O ato de revisitar amizades antigas e suas intrincadas dinâmicas, que muitas vezes resistem ao tempo e aos percalços da vida, é um terreno fértil para reflexões humanas. Nesse cenário, “Glass Onion: Um Mistério Knives Out” traz uma narrativa repleta de camadas, alinhando mistério e ironia mordaz em um formato que ecoa a tradição de Agatha Christie, mas com a originalidade desconcertante de Rian Johnson. O segundo capítulo dessa franquia, que já se firmou como uma das mais criativas do gênero, explora os jogos de poder e as relações tóxicas entre personagens caricatos que, sob a superfície de seu luxo e ostentação, revelam suas inseguranças e vícios.
A escolha de Johnson pelo título, uma alusão direta à canção dos Beatles, sugere o tom da obra: um quebra-cabeça onde o que parece óbvio frequentemente se revela enganoso. Suas camadas narrativas e simbólicas destacam-se como um estudo das relações humanas modernas, repletas de luz e sombra, moldadas por interesses e preconceitos. Nesse palco, o detetive Benoît Blanc, vivido com requinte por Daniel Craig, é novamente convocado para desatar os nós de um enigma cuja solução transcende a mera identificação de um assassino. Em sua performance, Craig entrega um detetive que equilibra humor, sagacidade e uma crítica sutil ao privilégio e à decadência moral.
A estrutura do longa mantém o equilíbrio entre os elementos que consagraram o primeiro filme, como a construção de personagens intrigantes e uma atmosfera de constante imprevisibilidade. Contudo, Johnson vai além ao ampliar a crítica social. Um dos destaques é Birdie Jay, interpretada por Kate Hudson, uma figura tragicômica que encarna os absurdos da cultura de celebridades. Sua alienação e comportamentos desastrosos, como festas incendiárias e declarações problemáticas nas redes sociais, refletem uma visão ácida sobre a superficialidade e irresponsabilidade de quem ocupa o topo da pirâmide social. Em contraste, a Cassandra Brand de Janelle Monáe emerge como a voz de consciência, determinada a expor segredos e desmascarar hipocrisias, em uma performance que adiciona densidade ao núcleo emocional do filme.
A influência de Agatha Christie continua evidente, mas Johnson a subverte com doses equilibradas de humor e metalinguagem. A desconstrução de clichês do gênero policial é uma constante, e o diretor utiliza essa abordagem para surpreender o público, seja ao reordenar a cronologia dos eventos ou ao reconfigurar a importância dos personagens. Enquanto no filme de 2019 o foco era a morte de Harlan Thrombey, aqui a narrativa explora os excessos de um grupo de ricaços entediados, cuja desconexão com a realidade os torna vulneráveis aos próprios jogos de poder e manipulação. Esse artifício narrativo mantém a trama dinâmica, ainda que o tempo de exibição prolongado ocasione especulações desnecessárias sobre o desfecho.
“Glass Onion” se apresenta como um espelho multifacetado das tensões contemporâneas, em que a comédia e o suspense coexistem em perfeita harmonia. A habilidade de Rian Johnson em costurar uma história que é ao mesmo tempo entretenimento e crítica social é inegável. Apesar de seu ritmo alongado, o filme se destaca pela profundidade com que examina seus personagens e pela coragem de brincar com as convenções do gênero. Com uma terceira entrada já sugerida, resta esperar até onde Johnson levará Benoît Blanc em sua jornada por mistérios cada vez mais intricados e provocativos.
★★★★★★★★★★