No Top 10 de 75 países: o filme brasileiro mais assistido de 2024,  na Netflix Divulgação / Netflix

No Top 10 de 75 países: o filme brasileiro mais assistido de 2024, na Netflix

Com “Biônicos”, Afonso Poyart demonstra um retorno ousado e desafiador ao cinema nacional, mantendo sua assinatura visual e narrativa marcada por escolhas estilísticas que dividem opiniões. Após o impacto inicial de “2 Coelhos” (2012) e sua breve passagem por Hollywood com o discreto “Presságios de um Crime” (2015), o diretor volta a explorar temas complexos com uma abordagem que, embora corajosa, sofre com alguns tropeços em execução. Em seu novo longa, Poyart constrói um mosaico de reflexões sobre família, superação, desigualdade e os limites éticos da tecnologia, sem abandonar sua paixão por tramas densas e viscerais.

A narrativa acompanha Maria Santos, interpretada por Jessica Córes, uma ex-atleta olímpica que perdeu tudo: o esporte, a mãe, e até mesmo a música que marcava seus treinos, como a ária “Nessun Dorma”, de Giacomo Puccini. O filme se desenrola em um Brasil distópico, onde avanços tecnológicos criam novos paradigmas para o corpo humano, mas também ampliam desigualdades. A trama se entrelaça com a história de sua irmã mais nova, Gabi, vivida por Gabz, que, após perder uma perna devido a um tumor, se reinventa como uma biônica de destaque. Essa relação conflituosa, repleta de inveja, admiração e ressentimentos, é um dos pilares emocionais da obra.

O roteiro, assinado por Poyart junto a Cris Cera, Victor Navas e Josefina Trotta, aposta em diálogos intensos e momentos de grande carga dramática, mas peca pela ausência de respiros cômicos e pela insistência em frases de efeito. Apesar disso, o texto consegue explorar com eficácia os dilemas morais e pessoais que permeiam a trama. O arco de Maria e Gabi é um terreno fértil para performances memoráveis, e ambas as atrizes brilham ao dar vida a personagens cheias de camadas e contradições.

No entanto, “Biônicos” não é apenas sobre rivalidade ou reconciliação. Ele também levanta questões profundas sobre como a tecnologia interfere na humanidade, usando o personagem Átila Hirsh, vivido por Klebber Toledo, para simbolizar os custos físicos e emocionais dessa relação. Ex-boxeador em decadência, Átila usa uma prótese de titânio que, ao mesmo tempo em que lhe dá força sobre-humana, o mantém preso a um ciclo de violência e autodestruição. Sua introdução, em uma cena confusa e mal conectada ao restante da narrativa, serve mais como catalisador para os eventos que se desenrolam no segundo ato, quando o filme ganha ritmo e foco.

A trilha sonora, assinada por Patrícia Portaro e Silvio Pellacani Jr., tenta equilibrar o clássico e o contemporâneo, mas sua execução não atinge o impacto esperado. Embora “Nessun Dorma” evoque um sentido de grandiosidade e nostalgia, a escolha de inserir um rap de Emicida em momentos-chave acaba por fragmentar a experiência sonora, sem criar uma identidade musical coesa. Essa incoerência sonora reflete algumas das decisões mais arriscadas do filme, que nem sempre se justificam dentro do contexto narrativo.

Visualmente, Poyart mantém seu estilo dinâmico, aproveitando-se de uma fotografia meticulosa e efeitos visuais impressionantes. Ele constrói um mundo futurista crível e ao mesmo tempo profundamente brasileiro, um feito raro no cinema nacional. É nesse cenário que as irmãs Santos enfrentam não apenas uma à outra, mas também seus próprios medos e ambições. O clímax da história, que transforma Maria em uma biônica, amplifica o debate sobre o que significa ser humano em um mundo onde a tecnologia redefine os limites do possível.

Com Bruno Gagliasso em um papel coadjuvante, o filme encontra momentos de leveza e introspecção, que ajudam a equilibrar o tom intenso predominante. Gagliasso, ao lado de Jessica Córes, consegue explorar com sensibilidade os aspectos mais humanos da trama, destacando os conflitos internos de Maria e o impacto que suas escolhas têm sobre aqueles ao seu redor.

Ainda que traga ecos de obras como “King Richard: Criando Campeãs” (2021), “Ex-Machina” (2014) e “Blade Runner 2049” (2017), “Biônicos” encontra sua própria voz ao misturar gêneros e referências de forma única. O resultado é um filme que, apesar de suas falhas, impressiona pela ambição e pela coragem de abordar temas universais sob uma perspectiva genuinamente brasileira. 

Afonso Poyart prova, mais uma vez, sua habilidade de criar histórias instigantes, mesmo que elas nem sempre atinjam todo o seu potencial. “Biônicos” é, acima de tudo, um lembrete de que o cinema nacional é capaz de explorar o futuro sem perder de vista as complexidades do presente.

Filme: Biônicos
Diretor: Afonso Poyart
Ano: 2024
Gênero: Ação/Ficção Científica
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★