Criada por Vicente Amorim, a cinebiografia “Senna”, que retrata a vida de Ayrton Senna, um dos maiores ídolos do esporte brasileiro e um ícone internacional de heroísmo e competitividade, não consegue surpreender quem já assistiu ao documentário homônimo de Asif Kapadia, lançado em 2010. Embora a série apresente um formato narrativo distinto, ela não consegue aprofundar-se tanto quanto o filme de Kapadia, que, com pelo menos quatro horas e meia a menos, conseguiu abordar com mais profundidade os pormenores da vida e da carreira de Senna.
Apesar de não ser um completo fracasso, a produção acaba falhando em alguns aspectos importantes, principalmente na exploração de certos temas e personagens centrais. Nas redes sociais, a polêmica envolvendo a rixa da família do piloto com sua ex-namorada, Adriane Galisteu, recebeu mais destaque do que merecia, ofuscando momentos importantes da biografia de Senna. Gabriel Leone, que interpreta o piloto, não é exatamente parecido com Senna fisicamente, mas consegue transmitir com habilidade as feições e trejeitos que marcaram a figura de Ayrton. Seu sorriso terno, as sobrancelhas franzidas quando algo o incomodava e as provocações feitas ao rival Alain Prost nas entrevistas são elementos que Leone incorpora com precisão, trazendo o personagem para a tela de forma convincente.
No entanto, o grande problema da série é o roteiro, que falha em não aprofundar questões relevantes tanto no campo pessoal quanto no político. A série não consegue explicar a importância de Ayrton Senna para o Brasil, não só no contexto esportivo, mas também em termos de sua relevância política e cultural durante um período crítico da história do país. O Brasil, na época, atravessava um momento de grave instabilidade política e econômica, durante a transição democrática pós-Ditadura Militar, enfrentando crises inflacionárias e uma grave pobreza que afetava milhões de pessoas. A autoestima do brasileiro estava em frangalhos, e a imagem do país no exterior não poderia ser mais negativa. Ayrton Senna se tornou um símbolo de superação e orgulho nacional, usando sua visibilidade e conquistas para resgatar a autoestima da população brasileira. Ele não se escondia, pelo contrário, levantava a bandeira do Brasil em cada vitória, deixando claro que era um brasileiro que representava o país com força e dignidade.
O contexto político e social brasileiro da época, que foi fundamental para a carreira de Senna, sequer é mencionado na série. A figura de Jean-Marie Balestre, presidente da Federação Internacional de Automobilismo (FIA) na época, é retratada de forma superficial, como alguém que simplesmente tentava prejudicar Senna, enquanto seus rivais pareciam apenas querer vê-lo afastado das pistas, temendo perder para ele. No entanto, a realidade era mais complexa. Pilotos sul-americanos, especialmente os brasileiros, enfrentavam preconceito por parte do establishment europeu, que predominava nas pistas. Era comum que fossem vistos como emotivos, descontrolados e indisciplinados. A visão era de que vinham de países periféricos, e Senna foi o piloto que desafiou esse estigma, conquistando o respeito de todos, incluindo de seu maior rival, o francês Alain Prost. A série poderia ter explorado mais profundamente esse ponto, mas falha ao não dar a devida importância ao impacto que Senna teve, não só como um grande piloto, mas também como um símbolo de resistência e mudança para o Brasil e para os pilotos sul-americanos.
Outro ponto negligenciado na série é o relacionamento de Senna com sua ex-mulher, Lílian. A presença dela na vida de Ayrton, especialmente durante sua adolescência e início de carreira, é subestimada. Apesar do casamento curto, ela foi uma parte importante da sua vida, e o divórcio, certamente, não foi tão rápido nem indolor como a série sugere. Faltou uma maior sensibilidade na forma como esse tema foi tratado, o que poderia ter adicionado uma camada emocional importante à narrativa.
A personagem de Laura Harrison, interpretada por Kaya Scodelario, também merece destaque, mesmo sendo uma figura fictícia. Ela foi criada para representar a relação paradoxal de Senna com a imprensa: ora um herói, ora um vilão. A forma como Senna foi retratado pela mídia, com momentos de adulação seguidos por períodos de críticas severas, foi um reflexo da ambivalência do público em relação a ele. A escolha de introduzir uma personagem fictícia para ilustrar esse relacionamento é uma tentativa de dar mais humanidade ao piloto, mas a série não vai além disso, deixando esse aspecto um tanto superficial.
No entanto, a produção acerta em alguns aspectos, como a fotografia e os efeitos de CGI, que, apesar do orçamento limitado, conseguem alcançar um nível técnico bastante impressionante, comparável ao de outras produções semelhantes internacionais e de alto orçamento. A série soube utilizar bem as locações na América do Sul, como Chile e Argentina, para recriar as pistas europeias onde Senna competiu. Graças ao CGI, esses autódromos puderam ser transformados em circuitos renomados da Fórmula 1, onde Senna teve grandes vitórias, o que ajudou a trazer um toque de realismo à produção.
Embora “Senna” não consiga fazer justiça total à grandiosidade da vida e carreira de Ayrton Senna, a série serve como um lembrete para as novas gerações da importância de seu legado, não apenas como piloto, mas como um ícone de superação e símbolo de um Brasil que buscava recuperar sua dignidade diante do mundo. É uma produção que, mesmo com suas falhas, oferece uma visão interessante, embora simplificada, da trajetória de um dos maiores nomes do automobilismo mundial.
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