“O Telefone Preto” é um engodo quase perfeito. O espectador mais treinado logo percebe uma grande semelhança entre o filme de Scott Derrickson e “O Telefone do Sr. Harrigan” (2022), o terror cheio de intenções poéticas dirigido por John Lee Hancock a partir do conto homônimo de Stephen King — um dos quatro de “If It Bleeds” (2020), coletânea de histórias curtas que inclui ainda “Rato”; “Se Sangra”, que dá nome à publicação em inglês; e “A Vida de Chuck” —, sobre a relação de um garoto de oito ou nove anos com o mundo a sua volta, um lugar que se revela dia a dia mais hostil.
Como no filme de Hancock, tensões infantojuvenis vêm a lume numa narrativa que prima pela ambiguidade, ora cadenciada, ora sem ritmo algum, com a única diferença de ter como pano de fundo uma sequência de crimes hediondos a cargo de um maníaco que ultraja a inteligência das autoridades por meses a fio. A adaptação de Derrickson e C. Robert Cargill para a história de mesmo nome, escrita por Joe Hill e publicada em 2022 numa compilação com outras catorze histórias curtas, poderia ser uma lamentosa burla do acaso, não fosse Hill filho de King. É coincidência demais.
Na Denver de 1978 — muito de acordo com as preferências de King, que também usa o Meio-Oeste americano como o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência e tragédia, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém —, Finney Shaw tenta fintar as cismas tão próprias entre os moleques de sua idade com a ajuda do futebol, ainda que não seja nenhum modelo de proficiência no esporte.
Bruce Yamada, o melhor amigo interpretado por Tristan Pravong, é a verdadeira estrela do time, e, como se vai assistir, a primeira vítima do Sequestrador, um homem misterioso cuja identidade passa boa parte do longa a salvo da investigação de Wright e Miller, os detetives de E. Roger Mitchell e Troy Rudeseal. Como se espera que aconteça a qualquer momento, Finney invade o radar do facínora, e então, o longa dá azo a um nonsense cheio de nuanças, em que o novo refém descobre que a chance de escapar daquele inferno passa pelo telefone preto do título, de onde recebe chamadas dos adolescentes de quem o Sequestrador já deu cabo.
Este é um filme de combustão excessivamente vagarosa, em que a ação que resolve o conflito principal toma corpo de uma vez, no último segmento. Na undécima hora, Mason Thames e Ethan Hawke oferecem a devida recompensa àqueles que por mais de cem minutos aguardaram a grande reviravolta — e assim mesmo, é inevitável a decepção, em se tratando de um pastiche do Rei do Terror. “O Telefone Preto” presta-se à triste constatação de que talento não é um dado da natureza, que se ganha com a hereditariedade. Se a pretensão de Hill é substituir o pai algum dia, é melhor adotar outra estratégia.
★★★★★★★★★★