Dizer que um filme sobre as descobertas da infância é encantador pode soar ou redundante ou apressado, uma vez que o universo da criança se caracteriza pela magia, pelo sonho, mas também pelo confronto com a vida como ela é. Se, todavia, este é o critério, “O Trem Italiano da Felicidade” é mesmo um caldeirão de feitiços, um mais poderoso que o outro, e Cristina Comencini, uma bruxa das melhores. Membro de uma família de cineastas experimentados, Comencini resgata uma história maldita de seu país, mais especificamente de uma região que sabe tirar proveito de dores que não passam nem em dez mil anos, escondendo num jeito muito particular de ser tristezas comuns a outras gentes.
A adaptação do livro homônimo da romancista napolitana Viola Ardone, de 2019, elaborada por Furio Andreotti e Giulia Calenda, volta à Nápoles do imediato pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) pelos olhos de um menino de oito anos, que sofre na carne os horrores da miséria e da completa falta de esperança que irmana aquelas pessoas. O argumento de Ardone reavivado por Comencini torna a cutucar feridas profundas da história contemporânea, e não por acaso Andreotti e Calenda são também roteiristas de “Ainda Temos o Amanhã” (2023), de Paola Cortellesi, sobre uma família tentando sobreviver na Roma dos anos 1940, cenário bem familiar a muitos oito décadas depois.
Traumas de infância têm o condão de perdurar por um tempo que muitas vezes parece inalcançável, até que começam a render memórias incômodas demais, prolongando um sofrimento que se retroalimenta, cresce do que julgávamos morto, nos envenena e, por fim, quem morre somos nós. Guardadas as proporções devidas, há muito do Fellini de “Amarcord” (1973) ou mesmo do Bergman de “Fanny e Alexander” (1982) em “O Trem”, grandes cineastas que ao se debruçarem sobre as lembranças mais doces — e nem tanto — de personagens ainda por completar o processo de amadurecimento deram à luz obras imperecíveis porque bravas em seu ímpeto de não se resignar com o tédio confortável da superfície. Na introdução, Amerigo Benvenuti, um famoso maestro, chega para um concerto no Teatro Dell’Opera Di Roma. Benvenuti recebe uma ligação de alguém que comunica o falecimento de sua mãe, e então Comencini leva o público por uma incursão intimista ao tempo mais infeliz do protagonista, que volta a ser apenas Amerigo, um garoto maltrapilho cuja magreza aguda nos ultraja.
Embarcar no tal trem, que levava crianças do longínquo e atrasado sul para serem educadas por famílias comunistas é a única saída para mães solo como Antonietta, vivida por Serena Rossi, que não tergiversa e despacha o filho na primeira oportunidade. Malgrado empanada por muitas subtramas igualmente acrimoniosas, não se pode perder de vista o relacionamento dialético de Antonietta e o pequeno Amerigo, vivido com espantosa convicção por Christian Cervone, com direito a passagens estranhamente divertidas sobre comunistas como devoradores de crianças e a dureza como Amerigo e os outros moleques viram-se para ganhar umas moedas. Tudo na justa medida de tragédia e poesia.
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