Mais irracional do que aquele que vive à mercê de expedientes que inevitavelmente desembocam em insânia e crueldade, é quem deposita expectativas de sensatez em pessoas que enxergam a vida como um jogo sem limites ou regras — onde tudo é permitido em nome da ascensão. Somos todos lançados à existência carregando dilemas profundamente pessoais, cujo significado só se revela a nós mesmos após um processo lento e, por vezes, excruciante. Esse caminho, embora nos torture, culmina no eventual e quase mágico clarão do discernimento, um atalho esporádico que o espírito encontra em sua busca pela razão. Guardamos nossas verdades mais íntimas como um tesouro raro, longe dos olhares mórbidos dos que nos desprezam e da perplexidade silenciosa daqueles que nos amam. Incertezas, dilemas e inquietações são nossos companheiros mais constantes — fantasmas obstinados que, desde o alvorecer da humanidade, assombram uma caminhada marcada por encruzilhadas morais que jamais deixarão de existir.
Viver em sociedade é, por sua vez, um embate diário. Cada dia nos desafia com seus próprios obstáculos, temperados por raros momentos de alegria que justificam a angústia de existir. Contudo, há um poder que nos sustenta: a capacidade de seguir adiante, mesmo quando muitos prefeririam nos ver ausentes. Nesse contexto, a arte emerge como um espelho perturbador da sociedade, uma lente através da qual exploramos nossas contradições mais profundas. Jordan Peele, após uma carreira consolidada em filmes de menor densidade, abraçou sua vocação como narrador de histórias que precisam ser contadas. Sua estreia como diretor, com “Corra!” (2017), surge como um marco em um momento oportuno, abordando uma das questões mais prementes da contemporaneidade: a ressurreição de um pensamento racialista, que, após uma trégua ilusória, retorna de forma ainda mais agressiva. Peele não só reconhece essa ferida social, mas a transforma em narrativa cinematográfica de grande impacto.
Destaque absoluto no Festival de Cinema de Sundance de 2017 — onde foi exibido em uma sessão exclusiva para convidados —, “Corra!” deixa claro desde o início que sua intenção não é suavizar a realidade. O que poderia ser o romance promissor de um casal em sua primeira viagem após cinco meses de relacionamento rapidamente se desdobra em paranoia e desconforto. O motivo é evidente. Na sequência de abertura, Keith Stanfield interpreta um personagem que, ao caminhar por uma rua de casas grandiosas, percebe estar sendo seguido de perto por um carro. Essa cena inicial, repleta de tensão, antecipa a atmosfera claustrofóbica que se intensifica à medida que a narrativa avança. Quando a ação se desloca para Chris e Rose — vividos por Daniel Kaluuya e Allison Williams — preparando-se para a viagem, a trama ganha forma. O casal, prestes a visitar os pais de Rose, enfrenta uma tensão latente: a família não sabe que Chris é negro, e a possibilidade de um desconforto é tema de conversa entre eles.
A inquietação de Chris se manifesta como o instinto de um animal que sente o cheiro de perigo iminente. Essa sensação cresce em um ritmo calculado, alimentado por diálogos que evidenciam uma hostilidade sutil, mas crescente. A fotografia de Toby Oliver, carregada de tons sombrios como azul petróleo e verde musgo, acentua o clima de opressão. No terceiro ato, a narrativa mergulha em um território ainda mais perturbador, envolvendo hipnose, lobotomia e transplantes de cérebro. Há até uma referência a Jeffrey Dahmer — o infame assassino em série — em uma fala de Rod, personagem vivido com alívio cômico por LilRel Howery. Essas escolhas narrativas reforçam que “Corra!” não é apenas uma peça de entretenimento, mas uma obra séria e profundamente reflexiva.
Jordan Peele constrói um filme que exige tanto do intelecto quanto das emoções de seu público. Ele não apenas expõe os horrores do racismo estrutural, mas os insere em um contexto narrativo que mistura gêneros e desafia convenções. A tensão crescente e os momentos de alívio cômico são equilibrados com maestria, resultando em uma experiência cinematográfica única. “Corra!” não faz concessões e, por isso, reafirma Peele como um cineasta que entende o poder do cinema como ferramenta de denúncia e transformação. A mensagem final não poderia ser mais clara: há pouco espaço para brincadeiras quando a luta pela dignidade humana está em jogo.
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