O filme mais bonito de Steven Spielberg (e um dos mais deslumbrantes dos últimos anos) está no Prime Video Divulgação / UPI

O filme mais bonito de Steven Spielberg (e um dos mais deslumbrantes dos últimos anos) está no Prime Video

Talento, rebeldia, a tal busca pela felicidade, o desejo de fazer da vida algo extraordinário, tudo isso pulsa em “Os Fabelmans”, decerto um dos mais autorais dos filmes de Steven Spielberg, um dos diretores mais intimistas de Hollywood. Spielberg levou meio século para conseguir botar no papel suas impressões a respeito do ofício que o consagrou, e o faz de um jeito não menos que mágico, centrando a ação num casal judeu e seus dois filhos, cada qual dotado de virtudes e ânimo distintos, o que nunca degenera em tumulto, soberba ou rupturas. Ao longo da carreira, o diretor foi dando sinais de, algum dia, tiraria do papel um projeto como este — basta analisar com um pouco mais de cuidado as entrelinhas de “E.T. O Extraterrestre” (1982) ou “A Lista de Schindler” (1993), ou mesmo “Tubarão” (1975) e “Guerra dos Mundos” (2005): a vontade de explicar seu fascínio pelo universo oculto das histórias que conta fica mais e mais óbvio a cada cena, sucessão de blagues visuais e jogos metalinguísticos de um mestre no meio como ganha a vida.

Mitzi Fabelman abdicou de uma promissora jornada como pianista clássica em prol do casamento, e mesmo que ainda ministre aulas particulares, nada mais é como antes. O marido, Burt, é um bem-sucedido cientista que roda filmes caseiros por hobby, e Sammy, o filho mais velho deles, sintetiza bem seus temperamentos e inclinações. Mitzi e Burt levam o pequeno Sammy para uma sessão de “O Maior Espetáculo da Terra” (1952), o clássico de Cecil B. DeMille (1881-1959) sobre o Ringling Bros-Barnum and Bailey Circus, a maior companhia circense do mundo, em atividade desde 1871, e a vida do garoto jamais volta ao que era. 

Spielberg e o corroteirista Tony Kushner dedicam bons minutos aos lances em que Sammy, interpretado na primeira fase por Mateo Zoryon Francis-DeFord, arregala bastante os grandes olhos azuis, bota a mão na massa e elabora a cena do desastre de trem usando uma composição de brinquedo, o que desagrada ao pai, porque não muito tempo mais tarde está tudo aos pedaços. Se o pai o recrimina, Mitzi fica maravilhada diante do dom de Sammy, e a dupla, encarnada por Michelle Williams e Paul Dano, leva a trama de modo a sempre realçar as naturezas diversas de seus personagens. Anos depois, já no fim da adolescência, ele dirige os colegas escoteiros num pastiche sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e Gabriel LaBelle mantém essa aura de gênio precoce desbravada com assombrosa competência por Francis-DeFord. Rompia-se o gelo.

O faro para o sucesso de Spielberg, derivação da sensibilidade a toda prova que o torna capaz de canibalizar o espírito do tempo e saber de pronto do que o público se ressente, do que gosta, com o que quer se deparar num filme, aliado à facilidade de transformar enredos flagrantemente inusitados, até absurdos, em fenômenos da indústria cultural — e, claro, minas de ouro inesgotáveis — consolidaram-no como um artista tão irrequieto quanto rentável, e seu grande mérito é ter a sagacidade de, além de não se permitir encantar cegamente nem pela estética nem pela bilheteria, valer-se daquela para chegar a esta. “Os Fabelmans” é mais uma prova dessa sublime habilidade de Spielberg.

Filme: Os Fabelmans
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Drama
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.