Kōji Yakusho permanece mudo ao longo dos quarenta minutos iniciais de “Dias Perfeitos”, o que não quer dizer que não esteja empenhado num dos melhores papéis do cinema. Não é de hoje que Wim Wenders toma o Japão por modelo para seus filmes, criativos, quase revolucionários e, sobretudo, poéticos, de um lirismo nada óbvio. É o que acontece nessa história de um zelador de banheiros públicos de Shibuya, um bairro nobre de Tóquio, que encara seu ofício como uma missão, da qual não pode fugir e na qual se escuda de um passado desditoso qualquer. Wenders busca inspiração no que cineastas nipônicos têm de mais potente e genuíno, casos do Yasujiro Ozu (1903-1963) de “A Rotina Tem Seu Encanto” (1962) e do Akira Kurosawa (1910-1998) do agridoce “Um Domingo Maravilhoso” (1947), referências claras neste trabalho do diretor; contudo, ele não se limita às homenagens e imprime uma marca num filme com muito de confessional.
“Dias Perfeitos” exige paciência. A rotina de Hirayama é repetida à exaustão, mas vencidas as cenas em que Wenders mostra seu protagonista levantando-se com o barulho de uma anciã a varrer a rua, aguando suas várias mudinhas, barbeando-se e aparando diligentemente o bigode grisalho, começa a se descortinar o universo riquíssimo de um homem singular. Hirayama vai para o trabalho na van da empresa, não sem antes comprar um café gelado na máquina do cortiço onde mora, e num estalo toda aquela melancolia se desvanece, graças à quem vai com ele no toca-fitas. A trilha sonora é um capítulo à parte, indo, claro, de “Perfect Day” (1972), de Lou Reed (1942-2013), a “Feeling Good” (1965), na voz balsâmica de Nina Simone (1933-2003), e a medida que avança o roteiro do diretor e de Takuma Takasaki, Hirayama prova-se ainda mais culto, devorando “Palmeiras Selvagens” (1939), o clássico da moderna literatura americana de William Faulkner (1897-1962), ao passo que tenta lidar com as poucas figuras de carne e osso que o cercam.
Wenders ilustra essa imensa dificuldade de Hirayama com gente viva nas cenas em que Takashi, o assistente interpretado por Tokio Emoto, chega atrasado para mais um expediente, pergunta demais, bisbilhota seus cassetes e o leva até um sebo de discos, rogando-lhe que venda seus tesouros e empreste-lhe o dinheiro, para que possa sair com Aya, a garçonete vivida por Aoi Yamada. Todavia, nenhum dos dois se compara ao que deverá enfrentar na virada do segundo para o terceiro ato, quando Niko, uma sobrinha que não vê há muito tempo, aparece para morar com ele, bagunça sua metódica rotina e vai-se embora, obrigada pela mãe.
Grande ponto de inflexão num enredo definido por uma estrutura assumidamente linear, essa sequência, com Yakusho, Arisa Nakano e Sayuri Ishikawa no pleno domínio de seus personagens, liquida de uma vez por todas a impressão de que Hirayama é um sujeito empedernido por suas mágoas. Tanto não é que se compadece de Niko e deixa que ela vá, levando seu volume de “Eleven” (1970), coleção de histórias curtas de Patricia Highsmith (1921-1995) que contém “The Terrapin”, sobre um menino emocionalmente abusado pela mãe. Ela precisaria mais dele.
Sob o ângulo da estética, “Dias Perfeitos” lembra a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard (1930-2022) e François Truffaut (1932-1984). O komorebi, a técnica que combina a sobreposição dos raios de sol e das sombras que dançam durante uma ventania a agitar a copa das árvores, fotografadas com uma câmera analógica por Hirayama, é o que pode existir de mais inquestionavelmente original num longa feito de colagens milimétricas, cada peça no seu lugar devido. Está aí o que faz deste um filme único.
★★★★★★★★★★