Dom Quixote: um livro para se ler eternamente

Dom Quixote: um livro para se ler eternamente

“Dom Quixote” é mais que uma obra-prima da literatura mundial; é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que deseje compreender os dilemas essenciais da vida humana e os limites do poder da literatura. Publicado em um período de transição entre a Idade Média e a Modernidade, o romance de Miguel de Cervantes nos apresenta, sob o véu da comédia, questões profundas sobre a natureza do idealismo, da loucura e da própria realidade. Ler “Dom Quixote” é confrontar-se com os limites entre o sonho e o desengano e, ao mesmo tempo, refletir sobre o que significa ser humano em um mundo cada vez mais pragmático e desencantado. Sua riqueza de temas e estilos faz com que seja um livro para todas as idades, em qualquer momento da vida. E, ao longo dessa jornada, uma das muitas cenas comoventes nos faz lembrar da profundidade escondida na aparente loucura de seu protagonista, como no episódio do Cavaleiro da Triste Figura.

Dom Quixote
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (Antofágica, 608 páginas)

“Dom Quixote” é, antes de tudo, um romance que se pretendia cômico, uma paródia da então popular literatura de cavalaria. No entanto, não há como negar que por trás do riso se ocultam as profundas marcas do trágico, as emoções humanas mais genuínas e, acima de tudo, uma incomparável dimensão comovente. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa dualidade se encontra no momento em que Sancho Pança, com sua costumeira simplicidade, concede a seu mestre a alcunha de Cavaleiro da Triste Figura. A conversa, que à primeira vista poderia ser considerada trivial, é, na verdade, um reflexo da profundidade psicológica com que Cervantes constrói seus personagens.

Quando Sancho explica a razão de tal nome, afirmando que jamais viu figura mais feia que a de Dom Quixote, temos aí o humor corrosivo, típico das interações entre mestre e escudeiro. Todavia, o que se segue é de uma ternura pungente. O cavaleiro, longe de se ofender ou refutar o comentário, aceita a alcunha com uma dignidade que ultrapassa o cômico. Ele a incorpora a seu nome, como se fosse uma espécie de reconhecimento silencioso de sua própria condição. Nessa aceitação serena e quase resignada, o leitor é levado a um ponto em que o riso se transforma em uma reflexão mais ampla sobre a condição humana e a trágica obstinação de um homem que, em sua loucura, procura incansavelmente a glória, mesmo sabendo, nas profundezas de sua alma, que essa busca é vã.

Cervantes, ao criar esse momento, mostra que o riso, quando verdadeiro, sempre traz consigo uma sombra de tristeza. Essa aceitação de Dom Quixote do epíteto de Cavaleiro da Triste Figura é também a aceitação de sua condição de derrotado, de homem que luta contra moinhos de vento, sabendo que não pode vencê-los, mas ainda assim se recusa a desistir de suas ilusões. O gênio espanhol constrói uma narrativa em que o heroísmo de Quixote não está em seus feitos, mas em sua capacidade de persistir em um mundo que não mais comporta o tipo de nobreza que ele busca encarnar.

Dom Quixote
Cervantes nos convida a rir e refletir sobre as contradições da existência

Ao longo de “Dom Quixote”, momentos como esse revelam uma complexidade que escapa à classificação simplista de comédia ou tragédia. O próprio Sancho, que muitas vezes surge como o contraponto cômico ao idealismo exacerbado de seu mestre, é também responsável por algumas das passagens mais sensíveis e reveladoras da obra. Em sua simplicidade, Sancho é capaz de enxergar a verdade que seu amo, com toda sua erudição e loucura, não consegue: a feiura de Quixote não é apenas física, mas simbólica, uma metáfora da desconexão entre o cavaleiro e o mundo real. E ainda assim, há amor, lealdade e uma inquebrantável admiração da parte de Sancho, sentimentos que conferem à obra um humanismo inegável.

Em muitos aspectos, o relacionamento entre Sancho Pança e seu mestre é a alma do romance. Se, à primeira vista, Sancho parece ser o simples servo que segue as ordens insanas de um senhor alucinado, com o tempo percebemos que sua relação com Quixote é muito mais profunda e complexa. Ele não segue Quixote apenas por interesse ou conveniência; há uma genuína afeição entre os dois, e isso transparece em momentos como o da alcunha de Cavaleiro da Triste Figura. Sancho, com sua linguagem prosaica, seus provérbios e sua sabedoria popular, é o espelho no qual Quixote, em sua altivez e delírios, pode enxergar, por um breve instante, a verdade de sua condição. O cômico, então, é perpassado por uma melancolia sutil, que torna a obra de Cervantes uma das mais complexas e belas já escritas.

É esse jogo entre o cômico e o trágico, entre a fantasia e a realidade, que torna “Dom Quixote” um livro inesgotável. A partir de situações aparentemente banais, o autor espanhol extrai reflexões profundas sobre o ser humano, sobre o tempo e a memória, sobre o ideal e o real. E ao criar personagens como Quixote e Sancho, Cervantes oferece ao leitor não apenas um espelho da Espanha de sua época, mas também um espelho de cada um de nós. Afinal, quem de nós, em algum momento da vida, não se sentiu como o Cavaleiro da Triste Figura, lutando por causas que, embora nobres aos nossos olhos, parecem completamente absurdas aos olhos dos outros?

A grandeza da obra cervantina reside, justamente, na sua capacidade de conciliar extremos. O cômico e o trágico convivem de forma harmoniosa; a loucura e a sanidade se entrelaçam; o alto e o baixo, o nobre e o vil, se fundem em um todo que transcende as classificações tradicionais da literatura. E ao aceitar ser o Cavaleiro da Triste Figura, Dom Quixote aceita, de forma tácita, a condição humana, com todas as suas contradições e paradoxos. É essa aceitação que, em última instância, faz de Quixote não apenas um personagem ridículo, mas um herói trágico no sentido mais pleno da palavra.

Nesse sentido, podemos afirmar que a obra-prima de Cervantes é muito mais do que uma sátira da cavalaria. Trata-se de uma profunda meditação sobre a condição humana, sobre o tempo, a memória, a realidade e a ilusão. Dom Quixote, o homem que luta contra moinhos de vento, é também o homem que luta contra o próprio tempo, contra a inexorável passagem das eras que transformam heróis em relíquias do passado. O livro, portanto, não é apenas uma história de loucura, mas uma reflexão sobre a natureza do sonho, sobre o que significa ser humano em um mundo que, como o nosso, frequentemente parece desprovido de sentido e propósito.

A grandeza de “Dom Quixote” reside na sua capacidade de nos fazer rir e chorar ao mesmo tempo. O gênio de Cervantes foi o de perceber que, no fundo, esses dois sentimentos estão profundamente entrelaçados. Rimos de Quixote porque reconhecemos sua loucura, mas também choramos por ele porque, em sua loucura, há algo de profundamente verdadeiro e humano. E talvez seja justamente essa mistura de riso e lágrimas que faz de “Dom Quixote” uma obra que, séculos após sua publicação, continua a nos fascinar, a nos interpelar, a nos emocionar e, acima de tudo, a nos fazer pensar.

A trama de “Dom Quixote”, dividida em duas partes, é engenhosa e multifacetada, demonstrando o domínio narrativo absoluto do autor. A primeira parte do romance inicia-se com a apresentação do protagonista, um fidalgo castelhano de meia-idade chamado Alonso Quijano, que, obcecado pela leitura de romances de cavalaria, decide se tornar cavaleiro andante. Imbuído de ideais ultrapassados, Quijano se reinventa como Dom Quixote de la Mancha, disposto a corrigir as injustiças do mundo, resgatar donzelas em apuros e lutar contra gigantes e inimigos imaginários. Sua loucura nasce de um desejo fervoroso de reviver um mundo que já não existe, o que transforma sua empreitada em uma jornada tanto épica quanto tragicômica.

Logo no início, Dom Quixote, sem qualquer preparo ou equipamento apropriado, parte em sua primeira expedição. Ele transforma uma velha armadura, adota um cavalo magro e maltratado chamado Rocinante e escolhe como sua dama idealizada Dulcineia del Toboso, uma simples camponesa que ele nunca conheceu, mas que ele transforma em sua musa. Em suas primeiras aventuras, Quixote enfrenta inimigos inexistentes. A famosa cena dos moinhos de vento ilustra a grandiosidade de sua ilusão. Ele os confunde com gigantes terríveis e, ao atacá-los, é derrotado pela pura força da realidade. Esse episódio, que poderia ser considerado apenas cômico, revela uma das características centrais do romance: o contraste entre o ideal e o real, entre o mundo que Quixote enxerga e o mundo como ele realmente é.

Após sofrer uma série de derrotas, Dom Quixote volta à sua aldeia para se recuperar. Ao ser encontrado em estado lastimável por um padre, um barbeiro e sua sobrinha, eles conspiram para impedir suas aventuras, queimando seus livros de cavalaria, que acreditam ser a causa de sua insanidade. No entanto, Dom Quixote não se dá por vencido. Convencido de que foi vítima de feitiçaria, ele decide partir novamente, desta vez com a companhia de Sancho Pança, um lavrador simples, que ele convence a se tornar seu fiel escudeiro, prometendo-lhe o governo de uma ilha em recompensa por sua lealdade.

Sancho, com sua sabedoria prática e seu bom senso, é o contraponto ideal para o idealismo delirante de Quixote. As aventuras que seguem são uma sucessão de equívocos e mal-entendidos. Dom Quixote vê uma venda simples como um castelo, prostitutas como damas da nobreza e pastores como cavaleiros adversários. Em todas essas situações, o cavaleiro é derrotado, espancado ou humilhado, mas nunca abandona sua visão distorcida da realidade. A grandiosidade de seu idealismo contrasta dolorosamente com a dureza do mundo ao seu redor, e, em vez de glória, ele encontra zombaria e castigo.

Ao longo da primeira parte, é possível perceber como a loucura de Quixote vai se tornando mais evidente para os personagens ao seu redor, mas também como ele começa a conquistar a simpatia de todos, inclusive dos leitores. O próprio Sancho, inicialmente cético e interessado apenas em sua recompensa, começa a nutrir uma lealdade genuína pelo cavaleiro. Há um afeto crescente entre os dois, o que torna o romance muito mais do que uma simples sátira. A amizade entre Quixote e Sancho é, em muitos aspectos, o coração da obra, e suas interações revelam a profundidade emocional que Cervantes infunde em sua narrativa.

Dom Quixote
Ao persistir em seus sonhos, o protagonista nos ensina o que significa ser humano

A primeira parte do romance termina com o retorno de Dom Quixote à sua aldeia, levado de volta à força por seus amigos, que esperam que ele se recupere de sua loucura. No entanto, o cavaleiro continua firme em sua resolução de lutar contra as injustiças do mundo e, assim, a trama se abre para a segunda parte do livro.

Na segunda parte, publicada dez anos após a primeira, Cervantes oferece uma continuação da jornada de Dom Quixote e Sancho Pança, mas agora com um tom ligeiramente diferente. A narrativa, embora mantenha o humor e a sátira, torna-se mais introspectiva, mais sombria, refletindo talvez a própria maturidade de Cervantes como escritor. Além disso, nesta segunda parte, os personagens estão cientes da existência da primeira parte de suas aventuras, pois, no universo da história, “Dom Quixote” já foi publicado, o que gera uma metalinguagem sofisticada e inovadora para a época.

Dom Quixote e Sancho retomam suas aventuras, mas agora enfrentam um novo tipo de desafio. Eles se deparam com pessoas que já leram sobre suas peripécias e, sabendo de sua loucura, decidem enganá-los para seu próprio entretenimento. Uma das aventuras mais notáveis é o episódio do Duque e da Duquesa, que, conscientes da fama de Quixote, armam uma série de armadilhas para zombar de sua credulidade e de sua missão cavalheiresca. Sancho, por sua vez, é nomeado governador de uma suposta ilha pelos mesmos nobres, cumprindo a promessa de Quixote. No entanto, sua experiência como governador rapidamente revela sua total inaptidão para a tarefa, e ele abandona o cargo, desiludido, mas com sua dignidade intacta.

Nesta segunda parte, o gênio espanhol explora de forma ainda mais profunda a dualidade entre o sonho e a realidade. Dom Quixote começa a questionar, em certos momentos, a veracidade de suas próprias crenças, mas nunca abandona completamente seu idealismo. A figura do Cavaleiro da Triste Figura se torna cada vez mais melancólica, pois o herói percebe que o mundo ao seu redor não é mais o palco de grandes feitos cavalheirescos, mas um cenário mesquinho e corrupto, onde os valores que ele preza já não têm lugar.

A narrativa caminha para seu desfecho com o confronto final entre Dom Quixote e o Cavaleiro da Lua Branca, uma figura que desafia Quixote a um duelo, com a condição de que, se for derrotado, ele deverá abandonar sua vida de cavaleiro andante. Quixote, fiel ao seu código, aceita o desafio e é derrotado. Obrigado a voltar à sua aldeia, o cavaleiro adentra a última fase de sua jornada.

De volta à sua vila, o protagonista, debilitado física e moralmente, adoece gravemente. É nesse momento que ocorre o que muitos consideram o ápice trágico da obra. Dom Quixote, às portas da morte, renega suas aventuras e confessa que finalmente recuperou a sanidade. Ele, que viveu toda sua vida buscando ser um cavaleiro, morre como Alonso Quijano, o Bom, um homem comum, sem glória, mas com uma dignidade redimida.

A morte de Dom Quixote encerra a obra de maneira pungente, pois o cavaleiro morre não como herói, mas como homem, um homem que, apesar de seus delírios, permaneceu fiel a um ideal. Cervantes, ao fechar o livro com essa morte, parece sugerir que, apesar de todas as derrotas e fracassos, há algo profundamente humano e admirável na obstinação de Quixote em acreditar na nobreza, na justiça e na beleza, mesmo quando o mundo insiste em lhe mostrar o contrário.

A importância de “Dom Quixote” para grandes escritores é algo marcante que só se repete em tamanho e amplitude quando comparamos com Shakespeare.

A relevância de Quixote para Thomas Mann é um capítulo singular na história da recepção da obra. Mann, um dos maiores romancistas do século 20, encontrou no gênio de Cervantes um alicerce para lidar com o turbilhão de sua própria época. Quando Mann fugiu da Alemanha nazista, refugiando-se nos Estados Unidos, ele levou consigo, durante a travessia atlântica, uma cópia de “Dom Quixote”. Este gesto carrega um significado profundo, pois, em meio à devastação que o mundo vivia, o autor buscou no romance espanhol um companheiro espiritual, uma âncora para os dias sombrios. Mann relatou que leu o livro fervorosamente durante a viagem e, ao se aproximar das Américas, começou a sonhar com Dom Quixote. O que impressiona é que, ao descrever o cavaleiro em seus sonhos, Mann fez uma conexão evidente entre Quixote e a figura de Nietzsche, seu filósofo de obsessão. A austeridade moral, a recusa em aceitar a realidade vulgar, a nobreza em meio à loucura — tudo isso evocava em Mann a figura trágica de Nietzsche, que, como Dom Quixote, carregava a espada do idealismo contra a brutalidade do mundo.

A obsessão por “Dom Quixote” não se limitava a Mann. Outros gigantes da literatura europeia também encontraram no cavaleiro da Mancha uma figura seminal. Ivan Turguêniev, em seu artigo intitulado “Dom Quixote e Hamlet”, construiu uma das comparações mais fecundas da crítica literária. Ele analisou as discrepâncias fundamentais entre os dois maiores personagens da literatura universal. Para Turguêniev, Dom Quixote é o personagem mais exterior de todos — um homem cujas ações são sempre visíveis, cujas batalhas são travadas abertamente no mundo. Ele vive em função de uma missão grandiosa, que demanda ser manifestada ao mundo em atos heroicos (ou ridículos). Já Hamlet, em contraste, é o mais interior dos personagens. Suas batalhas são travadas no silêncio de sua mente, e sua tragédia se desenrola em uma dimensão psicológica, não exterior. Enquanto Dom Quixote age, Hamlet pensa. Essa dicotomia entre o agir e o pensar, entre o idealismo exterior e o existencialismo interior, marca um dos debates mais ricos sobre a natureza do herói na literatura.

A influência de Cervantes sobre Dostoiévski também é inegável, e foi confessada pelo próprio escritor russo. Em uma carta endereçada à sua sobrinha, Dostoiévski afirmou que a criação de seu protagonista em “O Idiota”, o príncipe Míchkin, foi diretamente inspirada por Dom Quixote. Para Dostoiévski, Cervantes criara um modelo de bondade absoluta, uma figura que, em sua loucura e ingenuidade, se aproximava de Cristo. Míchkin, assim como Quixote, é uma figura essencialmente boa, mas, para ser verdadeiramente bom em um mundo corrupto e cínico, precisa também ser ridículo. Dostoiévski, em seu gênio trágico, percebeu que a bondade pura, desprovida de qualquer malícia, não pode sobreviver ao mundo sem ser alvo de zombaria e desprezo. Assim como o cavaleiro da Triste Figura é constantemente ridicularizado por sua visão idealizada do mundo, Míchkin sofre as consequências de sua santidade ingênua em um mundo decadente. Em sua carta, Dostoiévski dizia que a única personagem que se aproximava de Cristo era Dom Quixote, por seu amor incondicional ao bem, mesmo que isso o tornasse um objeto de escárnio.

Dom Quixote
A luta contra moinhos de vento: um símbolo da resistência humana frente ao impossível

A influência de Cervantes, entretanto, transcende a Rússia. O impacto imediato de “Dom Quixote” foi tão grande que, logo após sua publicação, ele começou a ser traduzido e circulado pela Europa. Sua popularidade foi avassaladora. O romance foi traduzido para o inglês ainda durante a vida de Shakespeare, o maior dramaturgo da língua inglesa. Existe a possibilidade, embora incerta, de que o próprio Shakespeare tenha lido “Dom Quixote”. No entanto, parece improvável que ele tenha sido diretamente influenciado pelo romance, uma vez que, à época da chegada da obra à Inglaterra, Shakespeare já havia se aposentado e estava afastado da produção dramática. Contudo, o fato de ambos os gigantes literários terem vivido no mesmo período faz emergir uma questão fascinante: como dois gênios, que escreveram sobre a condição humana com tanta profundidade, puderam coexistir, ainda que seus caminhos não se cruzassem?

“Dom Quixote”, portanto, transcende sua época e sua geografia. Não é apenas um reflexo do declínio do idealismo cavalheiresco da Idade Média, mas uma obra que reverbera em diferentes contextos históricos e culturais. Seja em Thomas Mann, em Turguêniev ou em Dostoiévski, o romance continua a inspirar reflexões profundas sobre o ser humano, a bondade, a loucura e a santidade. Cervantes, com seu cavaleiro lunático, tocou em questões essenciais da existência, criando um personagem que, em sua simplicidade e grandeza, continua a ser, até hoje, o espelho dos mais altos e baixos impulsos humanos.

Se há um autor na América Latina que pode ser considerado o herdeiro literário de Cervantes, esse autor é Jorge Luis Borges. A relação de Borges com “Dom Quixote” não era apenas de admiração; era de uma obsessão intelectual que atravessou toda a sua obra. Para Borges, Cervantes havia criado um universo que desafiava as barreiras entre o real e o fictício, um jogo literário que seduzia o leitor para além da trama, mergulhando-o nas complexidades metafísicas da própria existência. Borges não apenas reverenciava Cervantes; ele o via como um mestre da intertextualidade e da metalinguagem, elementos centrais na poética borgeana.

O fascínio de Borges por “Dom Quixote” se manifesta em vários de seus escritos, mas é no conto “Pierre Menard, autor do Quixote” que sua análise alcança um dos pontos mais altos. Nesse texto, Borges imagina um escritor contemporâneo, Pierre Menard, que, de maneira misteriosa, reescreve literalmente “Dom Quixote”, palavra por palavra, mas sem pretender copiar ou reproduzir a obra. Para Menard, o objetivo não era imitar Cervantes, mas recriar, no século 20, as mesmas palavras, dotando-as de novos significados. O Quixote de Menard, mesmo sendo idêntico ao de Cervantes em termos de vocabulário, carrega em si todo o peso da história que o separa de seu criador original. Esse jogo intelectual proposto por Borges é uma forma de destacar que a leitura e a interpretação de uma obra não são estáticas; elas mudam conforme o tempo, a cultura e a perspectiva do leitor.

Além deste célebre conto, Borges dedicou reflexões diretas a Cervantes e ao Quixote em seu texto “Magias parciais do Quixote”. Neste ensaio, Borges explora uma das questões mais perturbadoras e fascinantes de sua obra: a confusão entre a realidade e a ficção. Um dos trechos mais emblemáticos é o seguinte: “Por que é que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa? E as mil e uma noites num livro das mil e uma noites? Por que nos inquieta que o Dom Quixote seja o leitor do Quixote, e Hamlet, o espectador de Hamlet? (…) Tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios.”

Esta citação revela o cerne da obsessão borgeana com Cervantes: o fato de “Dom Quixote” transcender as convenções tradicionais da narrativa ao transformar seu protagonista, em certo momento, em leitor de sua própria história. Quando Dom Quixote descobre que suas aventuras foram publicadas e que ele se tornou um personagem de uma obra literária, o universo ficcional que Cervantes criou começa a colapsar sobre si mesmo. Essa “inversão”, como a chama Borges, inquieta porque desestabiliza a fronteira segura entre a ficção e a realidade. Se o Quixote pode ser leitor de sua própria história, se Hamlet pode ser espectador de si mesmo, então nós, como leitores dessas obras, também podemos ser personagens de uma ficção maior e ainda desconhecida.

Essa lógica fascinante desafia a compreensão convencional de tempo, espaço e identidade. Para Borges, as narrativas de Cervantes criam um labirinto ontológico onde o autor, o personagem e o leitor estão interligados, todos partes de uma vasta gama de significados entrelaçados. As “magias parciais” de que Borges fala não são apenas truques literários; são uma revelação metafísica de que a literatura, em última instância, pode ser uma forma de capturar a realidade — ou de sugerir que a realidade é, ela própria, uma construção literária.

Borges, ao revisitar a obra de Cervantes, não apenas homenageia o gênio espanhol, mas amplia os limites de sua criação. Para o autor argentino, Cervantes havia alcançado algo que poucos escritores conseguem: ele havia rompido o véu que separa a vida e a arte. Dom Quixote, em sua loucura, é tanto personagem quanto leitor de si mesmo, assim como nós, em nossa busca por sentido, podemos ser leitores e personagens de uma narrativa cósmica maior. E é essa possibilidade, esse vislumbre de uma verdade maior por trás do tecido da ficção, que Borges valoriza acima de tudo.

Dessa forma, “Dom Quixote” e Cervantes tornam-se centrais não apenas para a tradição literária ocidental, mas para a própria concepção de Borges sobre o que é a literatura e qual é seu papel na vida humana. A obsessão de Borges com o romance de Cervantes é uma reverberação de sua própria busca pela essência da ficção, e é através dessa lente que ele oferece sua mais profunda homenagem: a de um discípulo que compreende que seu mestre, com sua “magia parcial”, estava criando não apenas uma história, mas um espelho no qual todas as histórias e todos os leitores podem se ver, e, talvez, perceber sua própria ficcionalidade.

Entre a publicação da primeira e da segunda parte de “Dom Quixote”, algo peculiar e polêmico aconteceu: o surgimento de uma falsa continuação da obra. Publicada em 1614 por um autor desconhecido, que assinou sob o pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda, essa apócrifa segunda parte do “Dom Quixote” representou um golpe para Cervantes e para sua criação. A versão apócrifa se propunha a dar continuidade às aventuras do Cavaleiro da Triste Figura e seu fiel escudeiro Sancho Pança, mas, além de ser uma cópia desprovida da genialidade e do espírito original de Cervantes, denotava uma intenção clara de se aproveitar do enorme sucesso que a primeira parte havia alcançado.

Dom Quixote
Um diálogo entre loucura e sanidade que ecoa nos dilemas do mundo atual

Este episódio gerou não apenas um incômodo pessoal em Cervantes, mas também uma profunda reflexão literária que reverberaria em sua verdadeira segunda parte, publicada um ano depois, em 1615. A inserção dessa falsa continuação na história de Dom Quixote tem um efeito duplo: primeiro, expõe o impacto imediato e a popularidade da obra, que já em vida de Cervantes se tornava objeto de apropriações; segundo, introduz um elemento de metalinguagem ainda mais agudo na segunda parte.

Cervantes não deixou passar em branco o advento dessa obra apócrifa. Ele respondeu com ironia e crítica em sua própria segunda parte, transformando o que poderia ser visto como um ataque em um dos momentos mais brilhantes de autossuficiência literária. Em uma das passagens mais memoráveis da verdadeira continuação, Dom Quixote e Sancho Pança tomam conhecimento da existência desse falso livro, mencionando a obra de Avellaneda dentro do próprio enredo. Este artifício, além de reafirmar a soberania de Cervantes sobre sua criação, é também um testemunho de sua habilidade de jogar com as convenções literárias, tornando seus personagens conscientes da literatura que os cerca.

O uso desse falso “Quixote” como ferramenta narrativa é um dos exemplos mais sofisticados de metalinguagem na história da literatura. Não só os personagens sabem que existem livros sobre suas aventuras, como também têm consciência de que há versões falsas delas. Esta capacidade de Cervantes de incluir a cópia apócrifa em sua narrativa como um elemento essencial, ao invés de apenas repudiá-la, demonstra sua genialidade ao lidar com o mundo literário e com as questões de autoria e propriedade intelectual.

A obra de Avellaneda, por mais que tenha sido um espinho para Cervantes, acabou fortalecendo o impacto da verdadeira continuação, pois permitiu que o autor explorasse novas dimensões do conflito entre realidade e ficção. Ao introduzir reflexões sobre o plágio e a originalidade dentro da própria história, Cervantes estabeleceu um jogo literário que complexificava ainda mais os temas centrais do romance. O Cavaleiro da Triste Figura, que já havia se tornado um ícone de como o delírio pode transformar a vida em aventura, agora enfrentava um reflexo distorcido de si mesmo nas páginas de um autor que buscava lucrar com sua fama. Dessa forma, Cervantes não apenas recupera o controle narrativo, mas subverte a falsidade com humor e inteligência, reafirmando o caráter imortal de sua criação.

A existência dessa apócrifa segunda parte reforça o poder literário de Cervantes. Se uma obra plagiada já circulava antes mesmo de ele completar a sua própria, isso só atesta a grandiosidade e a popularidade do “Dom Quixote” no período. Ao transformar um obstáculo em elemento narrativo e em crítica implícita à usurpação criativa, Cervantes mais uma vez desafiou os limites do que a literatura podia fazer, elevando sua obra a um nível de autorreflexão que continuaria a inspirar escritores e críticos por séculos a fio.

No capítulo 3 da segunda parte de “Dom Quixote”, surge uma das cenas mais engenhosas e revolucionárias da literatura ocidental: o encontro de Dom Quixote com um leitor da primeira parte de suas aventuras. Esta cena marca o início de um diálogo entre o personagem e seu próprio público, uma metalinguagem que se desdobra em crítica literária no exato momento em que o texto se desenrola. Quando Dom Quixote pergunta ao leitor qual é sua passagem favorita, a resposta é o célebre episódio dos moinhos de vento, um dos momentos mais icônicos da obra. O que se segue é uma discussão, entre personagem e leitor, sobre o livro, inaugurando o que pode ser chamado de uma crítica literária interna ao próprio texto, algo inédito na história da literatura.

Este momento vai além da mera intertextualidade; ele introduz uma crítica literária feita no ato de leitura e escrita simultaneamente. Essa autorreflexão é um dos elementos mais profundos da segunda parte do romance. Dom Quixote, ao saber que uma falsa continuação circula, manifesta sua insatisfação, e o leitor concorda, rejeitando a apócrifa como inferior. O que Cervantes faz aqui é abrir o espaço para uma nova dimensão literária: o personagem torna-se ciente de sua existência como criação literária e de sua recepção pelos leitores. Isso não só reforça a complexidade do livro, como também é a inauguração de um tipo de “intratextualidade”, um diálogo entre as diferentes partes da obra e entre a obra e o seu próprio universo de leitores.

O distanciamento temporal entre a publicação da primeira e da segunda parte, com dez anos de intervalo, não é apenas um detalhe cronológico. Essa lacuna temporal é incorporada de forma estrutural à própria narrativa, contribuindo para uma interferência na forma como a segunda parte é concebida. Essa diferença temporal intensifica o processo de construção do romance, especialmente com a introdução do leitor como personagem. O mecanismo central da segunda parte é a criação da obra como um processo de leitura contínua. A leitura, portanto, não é um simples ato passivo ou posterior à escrita, mas um elemento constitutivo da própria estrutura do romance.

Dom Quixote
Entre o cômico e o trágico, uma reflexão sobre o idealismo e a realidade

A originalidade dessa abordagem se intensifica quando lembramos que Dom Quixote é, antes de qualquer coisa, um leitor. Desde o início do romance, ele é descrito como um ávido consumidor de livros de cavalaria, e essa voracidade pela leitura é o que desencadeia sua jornada insana. A ideia de que Quixote lia antes de ler e depois de ler, como diria Machado de Assis, é fundamental para entender a metanarrativa que Cervantes constrói. Dom Quixote não apenas vive as aventuras inspiradas por sua leitura; ele as recria, as reinterpreta e as reescreve. E na segunda parte, ele entra em um ciclo em que a leitura de sua própria história se torna parte de sua jornada. Ele se depara com leitores de suas aventuras e, ao discutir com eles os eventos que viveu (ou que acredita ter vivido), o romance se reflete sobre si mesmo, criando um espelho literário infinito.

Essa dimensão do personagem como leitor e, ao mesmo tempo, personagem lido, faz do romance um precursor da teoria da leitura e do leitor. Se na primeira parte já temos a presença da biblioteca de Dom Quixote e sua obsessão pelos livros, na segunda parte essa leitura se transforma em um elemento central da narrativa. O próprio Dom Quixote começa a questionar as versões de suas aventuras, refletindo sobre como elas são contadas, lidas e interpretadas. O leitor externo se torna parte da trama interna, e a obra transforma a experiência de leitura em um tema literário. Essa transgressão dos limites entre ficção e leitura é uma das inovações mais marcantes de Cervantes, colocando-o como um dos primeiros autores a pensar criticamente sobre a relação entre texto, leitor e personagem.

A presença de Machado de Assis nessa reflexão sobre o “Dom Quixote” também é pertinente. Machado, em suas reflexões sobre a obra e o personagem, observava essa dualidade entre leitura e realidade. Quixote, para Machado, é um personagem que vive e recria seu mundo a partir de leituras que o consomem. Ele lia antes de ler, e depois de ler, sugerindo que a leitura, para Quixote, não é um ato limitado à página, mas um processo de autoconstrução e, paradoxalmente, de autodestruição.

Assim, o que Cervantes inaugura em “Dom Quixote” não é apenas uma narrativa de aventuras cômicas e trágicas, mas uma profunda investigação sobre o ato de ler, escrever e interpretar. A obra se torna uma meditação sobre a própria literatura, e o personagem, ao interagir com seus leitores e confrontar versões falsas de sua história, oferece uma reflexão atemporal sobre a natureza da ficção e a relação entre o autor, o texto e o leitor.

A grandeza de “Dom Quixote” reside, sobretudo, em sua capacidade de levantar questões essenciais para a vida humana — amizade, verdade, justiça —, não apenas a partir de um ângulo intelectual abstrato, mas também a partir de uma perspectiva prática e concreta. O diálogo contínuo entre Dom Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro visionário e o escudeiro de origem humilde e analfabeto, cria um cenário único de discussão sobre os fundamentos da existência humana. Essa interação lúdica entre os dois personagens permite que as questões mais complexas da filosofia e da ética surjam de forma orgânica e muitas vezes divertida, abordando desde as necessidades mais básicas da vida até os mistérios mais profundos da condição humana.

Esse contraste entre o intelectual e o simples é fundamental para a estrutura do livro, pois, em sua simplicidade, Sancho representa o senso comum, a voz pragmática do dia a dia, enquanto Dom Quixote encarna o idealismo exacerbado, aquele que busca uma verdade além do aparente. Juntos, eles formam uma dupla que simboliza a coexistência dessas duas perspectivas, e é na fricção entre suas visões de mundo que emergem os diálogos mais memoráveis e profundos. Quixote, ao tentar explicar a justiça ideal ou a amizade perfeita, frequentemente se perde em devaneios absurdos e metafísicos, enquanto Sancho traz essas ideias para o solo da realidade cotidiana. Ainda assim, as contribuições de ambos são igualmente válidas, e é essa complementaridade que enriquece a obra e a torna tão universal.

Um dos temas centrais dessa convivência entre cavaleiro e escudeiro é a questão da loucura e da sanidade. A genialidade de Cervantes está justamente na forma como ele explora a loucura de Dom Quixote, que é ao mesmo tempo evidente e ambivalente. Na ação, Quixote é indiscutivelmente insano. Ele ataca moinhos de vento, confunde rebanhos de ovelhas com exércitos inimigos e enxerga gigantes e magos onde não há nada além do mundo comum. No entanto, quando fala de temas que não estão diretamente relacionados à sua obsessão com a cavalaria, ele revela uma lucidez surpreendente. Seus discursos sobre a vida, sobre o comportamento humano, a moralidade e até mesmo a política são muitas vezes impregnadas de sabedoria, sensatez e parcimônia.

Dom Quixote
Uma obra que desafia o leitor a questionar suas próprias certezas

Essa dualidade cria um fascinante paradoxo: Dom Quixote é, ao mesmo tempo, o homem mais insano e mais lúcido de seu tempo. Cervantes parece sugerir que, em um mundo desordenado e cruel, apenas aquele que está fora da realidade — um “louco” no sentido convencional — pode ser capaz de ver e discutir as questões essenciais da vida de forma verdadeira. A “loucura” de Quixote, portanto, não é um simples delírio, mas uma forma de transcendência; ele se eleva acima da banalidade do cotidiano para refletir sobre como o homem deveria ser, sobre o que é a verdadeira justiça e a verdadeira amizade.

Por outro lado, sua loucura é também um espelho que reflete a insanidade do mundo ao seu redor. Se o mundo é, como parece ser, um lugar de injustiças, corrupção e deslealdade, então a loucura de Dom Quixote é, em certo sentido, uma resposta à própria loucura da sociedade. Ele luta contra um universo que não entende nem valoriza os ideais que ele persegue. Cervantes, ao desenhar esse personagem insano, mas profundamente humano, parece insinuar que, em um mundo corrompido e desajustado, apenas aquele que se afasta das normas sociais — o “louco” — é capaz de articular verdades sobre a condição humana.

A relação entre Dom Quixote e Sancho Pança também reflete uma complexa exploração da amizade e da solidariedade. Em muitos momentos, a conexão entre os dois transcende as diferenças sociais e intelectuais. Sancho, inicialmente, se junta a Dom Quixote por interesse material, esperando se tornar governador de uma ilha que jamais virá. No entanto, ao longo da narrativa, a amizade genuína que se desenvolve entre eles vai além do cálculo ou da loucura. Sancho, apesar de não compartilhar as ilusões do cavaleiro, o acompanha em suas jornadas, muitas vezes por pura lealdade e carinho. E Quixote, por sua vez, começa a ver em Sancho um companheiro fiel, um amigo que, mesmo com sua visão limitada, oferece uma presença constante e essencial.

O diálogo entre o idealismo de Quixote e o pragmatismo de Sancho simboliza, portanto, o encontro entre duas maneiras de encarar a vida. Dom Quixote sonha com um mundo que não existe, enquanto Sancho navega o mundo que existe. Juntos, eles abordam questões como o poder, a honra e a verdade de maneiras distintas, mas complementares. Cervantes, com sua extraordinária habilidade narrativa, transforma esse diálogo em um espelho da própria condição humana: uma luta constante entre o desejo de transcender a realidade e a necessidade de sobreviver nela.

“Dom Quixote” não é apenas uma obra literária; é um tratado sobre a natureza humana, com toda sua complexidade, suas ambições e suas fraquezas. A loucura de Dom Quixote é, na verdade, uma forma de sanidade em um mundo louco, e sua jornada, ao lado de Sancho, se torna uma reflexão contínua sobre o valor da vida, da amizade e da busca pelo sentido em um universo caótico.

A revolução de Cervantes ao criar o que muitos chamam de o primeiro romance moderno está intimamente ligada à maneira como ele explora e transforma a relação entre narrativa e leitor. Uma das inovações cruciais que definem “Dom Quixote” como o ponto de partida do romance moderno é justamente a introdução da figura do leitor, não como um mero receptor passivo de histórias, mas como um elemento ativo, convocado a refletir, discutir e, muitas vezes, questionar o próprio ato de narrar. Cervantes quebra as convenções da narrativa tradicional ao exigir que o leitor preste atenção não apenas ao que é contado, mas ao como é contado, transformando a leitura em um processo dialógico e consciente.

No romance de cavalaria tradicional, o narrador costuma ser uma figura providencial, uma presença quase divina que constantemente intervém para salvar o herói das adversidades, garantindo sua vitória e perpetuando o ciclo de aventuras. O cavaleiro, nesses relatos, é protegido pelo próprio esquema narrativo; suas falhas são redimidas pela força de um destino pré-estabelecido que conspira em seu favor. O narrador, nesse sentido, não é apenas o contador de histórias, mas uma força superior que molda e determina o curso dos eventos.

No entanto, Cervantes, ao escrever “Dom Quixote”, rompe com esse modelo narrativo. O cavaleiro da Triste Figura, ao contrário dos heróis da literatura cavaleiresca que ele tanto idolatra, não é protegido pelo narrador. Não há um destino pré-determinado que o favoreça. Dom Quixote deve confrontar a realidade brutal por conta própria, sem qualquer ajuda divina ou providencial. Ele está entregue ao fluxo da vida e ao curso imprevisível dos acontecimentos. O narrador, longe de ser uma figura onipotente que manipula os eventos para favorecer o herói, assume uma postura mais distanciada, quase irônica, deixando o cavaleiro se defrontar com suas próprias ilusões.

Ao fazer isso, Cervantes muda a dinâmica entre narrativa e destino. Não há um final garantido, nem o conforto de saber que o herói será salvo no último momento. Em vez disso, o leitor é convidado a perceber a fragilidade de Dom Quixote, suas derrotas e frustrações, e a refletir sobre a natureza do fracasso humano. O próprio conceito de heroísmo é colocado em xeque. A ausência de uma narrativa providencial faz com que o cavaleiro tenha de se definir não por suas vitórias, mas por sua persistência diante da adversidade, por sua capacidade de continuar sonhando mesmo quando o mundo ao seu redor insiste em esmagar esses sonhos.

Essa ausência de garantias narrativas, essa abertura ao inesperado, é uma característica fundamental do romance moderno, e Cervantes, ao recusar o papel do narrador como salvador, cria uma nova forma de contar histórias, na qual o leitor precisa se engajar de maneira ativa, consciente de que o desfecho não está dado de antemão. O narrador de “Dom Quixote” não é apenas um contador de histórias; ele é um provocador, um mediador que joga com as expectativas do leitor, que o desafia a perceber as nuances, as ironias e as ambiguidades da narrativa.

Dom Quixote
A relevância do livro atravessa séculos, dialogando com leitores de todas as épocas

Além disso, ao introduzir personagens que comentam sobre a própria leitura da primeira parte do livro, como ocorre no capítulo 3 da segunda parte, ao qual já nos referimos, Cervantes inaugura uma forma inédita de intratextualidade e metanarrativa. Dom Quixote, ao discutir com o leitor fictício que prefere o episódio dos moinhos de vento, participa de uma espécie de crítica literária ao vivo, em tempo real, dentro do próprio enredo. Essa cena, aparentemente simples, revela a genialidade de Cervantes ao transformar o ato de leitura em um componente estrutural da obra. O livro se torna uma reflexão sobre a própria leitura, e o leitor, real ou fictício, é convidado a ser mais do que um espectador passivo; ele é chamado a participar da criação do significado, a refletir sobre o que a obra está dizendo e sobre como ela está dizendo.

A distância temporal entre a publicação da primeira e da segunda parte de “Dom Quixote” também exerce um papel decisivo nesse processo. Ao longo dos dez anos que separam as duas partes, o mundo ao redor do cavaleiro muda, e a recepção da primeira parte cria um espaço para que a segunda parte seja, em muitos aspectos, uma resposta à crítica e aos leitores da obra original. Cervantes introduz uma interferência estrutural nesse intervalo temporal: a leitura, que já era um tema importante na primeira parte, torna-se um elemento essencial da construção narrativa na segunda. A obra se transforma em um diálogo contínuo entre a leitura e a escrita, entre a criação e a recepção, e o leitor — tanto o fictício quanto o real — é elevado à condição de coautor da obra.

Nesse sentido, a genialidade de Cervantes ao “inventar” o romance moderno está justamente na forma como ele consegue engendrar uma obra que é, ao mesmo tempo, uma narrativa épica, uma sátira social, uma comédia e, sobretudo, uma meditação sobre o próprio ato de narrar. Ele inaugura um novo tipo de leitor, um leitor que não pode se contentar com a superficialidade dos eventos, mas que é compelido a mergulhar nas camadas mais profundas do texto, a questionar as intenções do narrador, a desconfiar da linearidade da trama e a participar ativamente do processo de construção do significado. “Dom Quixote” não é apenas um livro para ser lido; é um livro para ser pensado, discutido e reinventado a cada leitura.

Ler esta obra é um exercício de vida. Não é apenas um livro para ser lido uma vez e descartado, mas um tesouro que resiste ao tempo e à repetição, que se oferece ao leitor como um espelho da própria existência, em suas múltiplas facetas. É um romance que provoca reflexão contínua, cada releitura abrindo novas perspectivas, ampliando o horizonte não só do entendimento literário, mas do entendimento da própria condição humana. A cada nova investida sobre suas páginas, somos convidados a rever nossas concepções, questionar nossas certezas e ampliar nosso olhar sobre as questões mais profundas da vida.

A razão pela qual “Dom Quixote” é uma obra para toda a vida está no fato de que, além de ser uma narrativa engenhosa e encantadora, é um livro que nos dá instrumentos para entender o mundo de hoje. A relação entre narrar e inventar o mundo, tão bem explorada por Cervantes, é mais relevante do que nunca em uma época em que as fronteiras entre ficção e realidade se tornam cada vez mais tênues. Ao acompanharmos as desventuras do Cavaleiro da Triste Figura, que insiste em transformar a realidade ao seu redor através do filtro de suas leituras cavaleirescas, somos levados a questionar como as histórias que contamos — e que nos contam — moldam nossa percepção da realidade. Quais narrativas nos guiam? Quais ilusões alimentamos? E o que acontece quando confrontamos nossas fantasias com o mundo tal como ele realmente é?

Há uma grandeza paradoxal em Dom Quixote: ele é ao mesmo tempo ridículo e profundamente nobre. Sua obsessão por reviver a cavalaria é claramente anacrônica e fadada ao fracasso, mas é justamente nesse fracasso que reside sua força. Ele se recusa a aceitar o mundo tal como é, e isso, por mais louco que pareça, é um gesto de resistência contra a mediocridade, contra o cinismo e o conformismo. Dom Quixote nos ensina que a verdadeira grandeza não está em vencer batalhas, mas em continuar lutando por aquilo em que acreditamos, mesmo quando todas as probabilidades estão contra nós.

E por que “Dom Quixote” continua sendo uma leitura essencial? Porque o romance nos obriga a pensar sobre a natureza da narrativa e do mundo que inventamos através dela. O livro desafia o leitor a não se contentar com a superficialidade da história, mas a mergulhar nas camadas mais profundas da narrativa, a questionar não apenas o que está sendo contado, mas como está sendo contado. Cervantes nos lembra que narrar é um ato de criação, e que criar mundos, seja na ficção ou na vida, é uma das atividades mais humanas e mais necessárias.

“Dom Quixote” nos ensina que ler é, inicialmente, um ato de criação conjunta entre o autor e o leitor. É um convite para nos tornarmos coautores da história, para reinterpretar e reinventar o mundo a cada nova leitura. O livro nos oferece um espaço para refletir sobre a vida, sobre nossas crenças e ilusões, sobre o poder das narrativas em moldar nossa realidade. E, em última análise, nos convida a sermos, como Dom Quixote, criadores de nossos próprios destinos, mesmo que, para isso, precisemos, de tempos em tempos, desafiar o bom senso e abraçar a loucura do sonho.

Cervantes, ao escrever sua obra-prima, tinha uma preocupação central: que ela fosse bem recebida e lida. Diferentemente do que podemos imaginar hoje, em um tempo em que o livro é reconhecido como um dos maiores clássicos da literatura universal, Cervantes estava inserido em um contexto onde o sucesso imediato e a aceitação popular eram importantes para qualquer escritor. A cultura da época não carregava a noção de eternidade literária que temos hoje. O mercado editorial era mais incipiente, e os autores frequentemente escreviam com o objetivo de atrair o público, muitas vezes ajustando suas histórias ao gosto dos leitores.

É nesse espírito que Cervantes, na primeira parte de “Dom Quixote”, introduz diversas histórias de amor que não têm conexão direta com o enredo principal. Essas histórias eram voltadas para agradar o leitor comum, que já estava acostumado com romances de cavalaria recheados de aventuras amorosas e dramas entre casais. Cervantes sabia que precisava cativar esses leitores para garantir o sucesso da obra, e por isso enveredou por tramas paralelas que, embora não fossem essenciais à narrativa central, cumpriam o papel de tornar o livro mais atrativo para o público de sua época.

No entanto, com o sucesso da primeira parte, Cervantes ganhou confiança. Ao perceber que havia conquistado os leitores, ele se sentiu mais seguro em sua visão artística e optou por não repetir esse expediente na segunda parte. Na continuação do livro, as histórias secundárias de amor, que na primeira parte serviram para “adoçar” a narrativa, desaparecem. Isso reflete um Cervantes mais maduro e consciente do impacto que sua obra estava causando, mais confiante em deixar que a narrativa de Dom Quixote e Sancho Pança fluísse sem interrupções desnecessárias.

Esse desejo de agradar o público, contudo, não impediu que a obra tivesse seus defeitos. Na primeira parte, encontramos diversos erros: epígrafes erradas, citações inadequadas e problemas de coerência narrativa. O exemplo mais notório é o caso do asno de Sancho Pança, que desaparece em um ponto da história e reaparece posteriormente sem qualquer explicação plausível. Esses descuidos sugerem que, no processo inicial de criação, Cervantes não estava preocupado em fazer uma obra perfeita ou imortal. Na verdade, as primeiras edições foram lançadas com muitos desses erros, e só com o tempo, à medida que o livro foi reeditado, eles começaram a ser corrigidos.

Isso revela um aspecto interessante sobre a mentalidade cultural da época. Cervantes não escrevia com o objetivo de criar uma obra eterna; ele estava imerso em um ambiente literário onde a preocupação principal era a aceitação imediata e a circulação de sua obra entre os leitores. Somente no século 20, com o surgimento de edições cuidadosas organizadas pelo Instituto Cervantes, é que a obra passou a ser tratada com o rigor editorial que conhecemos hoje. Isso contrasta com a percepção moderna de “Dom Quixote” como um clássico absoluto. Para Cervantes, o livro era, antes de tudo, uma obra para ser lida e apreciada em seu tempo, e ele fez ajustes e concessões para garantir essa leitura.

A importância que Cervantes dava ao leitor, e sua preocupação em agradá-lo, se revelam, com o tempo, um dos seus maiores trunfos. A obra nos convida, até hoje, a revisitar e reinterpretar suas páginas, ampliando nosso entendimento sobre a narrativa e sobre nós mesmos enquanto leitores. E, ao fazer isso, Cervantes nos ensina que o ato de ler é também um ato de criar, de nos tornarmos coautores da história que está sendo contada.

Outro ponto central, que reverbera ao longo dos séculos e atravessa as obras de inúmeros autores, é a luta entre a linguagem culta e a popular. Cervantes, ao compor o diálogo entre Dom Quixote e Sancho Pança, explora essa tensão de maneira profunda e lúdica. Dom Quixote, com seu idealismo exacerbado e seu vocabulário formal, repleto de referências à cavalaria, contrasta com a fala simples e direta de Sancho, que representa o homem do povo, pragmático e astuto. Essa convivência entre os dois mundos linguísticos cria uma dinâmica única, na qual se discutem desde questões mais banais até temas filosóficos profundos.

Esse embate entre o erudito e o popular não se limita à comicidade do contraste, mas se torna uma das forças propulsoras do livro. Ao longo de suas andanças, Dom Quixote e Sancho conversam sobre amizade, justiça, verdade e outros valores essenciais, utilizando tanto a pomposidade da fala culta quanto a sagacidade popular. Essa interação faz com que “Dom Quixote” seja acessível a todos os tipos de leitores: os que buscam a erudição e os que se divertem com a espontaneidade de Sancho. Cervantes cria, assim, uma ponte entre diferentes classes e níveis de conhecimento, tornando seu livro universal.

Autores como João Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”, também trabalharam esse diálogo entre o culto e o popular de forma magistral. No caso de Rosa, a linguagem do sertanejo é elevada a uma poesia complexa e filosófica, fazendo com que o popular se misture ao erudito, ao mesmo tempo em que se mantém genuíno. Esse mesmo processo está presente em “Dom Quixote”, onde a nobreza das palavras de Dom Quixote e a simplicidade de Sancho criam uma fusão que se reflete na riqueza da narrativa. Tal interação linguística é um dos elementos que permitem que o livro atinja uma enorme diversidade de leitores e que todos se sintam à vontade na leitura, encontrando tanto profundidade quanto humor, tanto sabedoria quanto descontração.

Ao final de tudo, é importante lembrar que Cervantes tinha uma intenção muito clara ao criar seu romance: ele desejava que seus leitores rissem de verdade, não com risos contidos ou meramente intelectuais. Em uma de suas cartas, Cervantes expressa o desejo de que o público lesse “Dom Quixote” às gargalhadas, e não com risos modestos. Essa afirmação é emblemática, pois sintetiza o espírito do livro — uma obra que transcende a comédia leve para se tornar uma crítica à sociedade, aos valores e ao próprio ato de contar histórias, mas que nunca perde sua essência de divertir. “Dom Quixote” se estabelece não apenas como um marco da literatura, mas também como uma celebração do humor, da vida e da capacidade de rirmos de nós mesmos.

Encerrar a leitura de “Dom Quixote” é muito mais que finalizar um livro: é fechar um ciclo de reflexão profunda sobre os maiores dilemas da condição humana. O romance de Cervantes transcende seu tempo e suas fronteiras culturais, falando diretamente ao coração de qualquer leitor que se disponha a ouvir suas lições de amizade, justiça e verdade. A loucura de Quixote, com sua mistura de idealismo e sensatez, nos obriga a repensar nossas próprias atitudes diante do mundo, e nos convida a rir e a chorar ao mesmo tempo, num mergulho profundo nas contradições da vida. Por isso, é impossível não reconhecer: “Dom Quixote” é uma leitura obrigatória. Sua leitura é uma prova de amor à humanidade, tanto quanto a existência e a permanência da própria obra, que continua, século após século, a iluminar nossos caminhos e a nos lembrar do que significa realmente ser humano.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.