O Cupom Falso, de Lev Tolstói

O Cupom Falso, de Lev Tolstói

Em seu livro autobiográfico, “Uma Confissão”, Tolstói introduz a seguinte ideia: “Só conseguimos viver quando estamos embriagados pela vida; quando ficamos sóbrios, é impossível não ver que tudo isso é apenas ilusão, e uma ilusão tola! Na verdade, não há nada aqui de engraçado nem de espirituoso, é apenas cruel e absurdo”. Uma visão pessimista do escritor, que nasceu católico, foi batizado e criado, segundo ele mesmo, “na fé cristã ortodoxa”. Tolstói tornou-se muito cedo um descrente e abandonou a educação religiosa que recebeu. Mais tarde, no final da década de 1870, depois de uma importante crise moral, converteu-se ao cristianismo e elaborou sua visão particular numa doutrina mais tarde conhecida como tolstoísmo. Influenciou personalidades importantes, como Mahatma Gandhi, por exemplo.

O Cupom Falso
O Cupom Falso, de Lev Tolstói (Editora 34, 96 páginas, tradução de Priscila Marques)

Em “O Cupom Falso”, a essência do pensamento tolstoiano está sintetizada e apresentada de forma direta. Um garoto, que precisa pagar uma dívida, recebe do pai um cupom no valor de dois rublos e meio. Como deve seis rublos, altera o valor do cupom com a ajuda de um amigo. Inserindo apenas o número um, o valor passa a ser 12 rublos e meio. Para passar o cupom adiante, enganam uma senhora lojista realizando uma compra e exigem a diferença do valor do cupom. O que parece ser um ato simples e pueril se torna o estopim para uma série de eventos desastrosos. Para Tolstói, qualquer pecado, mesmo que muito pequeno, é um erro terrível e por isso nunca deve ser cometido. Falsificar o cupom é, por analogia, como Eva comer o fruto proibido e o passar a Adão. Aparentemente uma ação insignificante, mas que tem consequências desastrosas, uma vez que uma regra estabelecida foi quebrada e, para que a ordem se restabeleça, deve haver punição.

O cupom do título é a maneira que Tolstói encontrou para elaborar uma doutrina filosófica coerente e crítica dos métodos da Igreja de sua época. Avesso às maneiras dos sacerdotes e ao sistema jurídico, político e policial, ele estrutura sua ideia com bases cristãs originais, mas dispensando o pensamento formal das instituições estabelecidas. O garoto, Mítia, depois de cometer o seu pecado original, empurra uma fileira de dominós em pé para que todos caiam em harmonia até que o último também não mantenha sua posição. Reação em cadeia! Como na premissa de “O Curioso Caso de Benjamin Button”, onde um acidente banal leva à desconstrução de uma carreira que deveria ser formidável e altera todo o rumo da história de uma ou mais pessoas, entregar um cupom falso leva a uma sequência de eventos que, de um jeito ou de outro, são diferentes (e algumas vezes radicalmente opostos) ao que seriam caso o pecado não fosse cometido. Há um emaranhado de estados, intrincados e possíveis. Apenas uma ação é o suficiente para desenrolar o novelo e estender o fio por um caminho específico. Mas, para Tolstói, há uma lição em tudo isso. Vamos elaborá-la.

De todos os infortúnios causados pelo pecado de Mítia, o mais desastroso (ou não) é o de Stepan. “O Cupom Falso” é dividido em duas partes. A primeira está relacionada ao efeito cascata criado pela falsificação. Como o cupom falso foi o indutor de uma série enorme de eventos, como em geral é a vida, várias personagens são apresentadas e suas desventuras são contadas. Uma fração dos eventos levou à criação de um assassino em série, Stepan.

Stepan deixa um rastro de sangue por onde passa. Sua sede por sangue é ao mesmo tempo colossal e inexplicável. Parece a sede de um psicopata por violência, simplesmente. Mas não é! Stepan se torna exímio em matar. Degola gargantas com grande facilidade. Até que uma personagem, resultado dos eventos elencados por Tolstói em sua novela, afeta terrivelmente o comportamento do assassino. Aqui está o ponto alto do livro e o momento definitivo em que Tolstói coloca em prática sua doutrina. Antes de matar Maria Semiônovna, Stepan olha direto em seus olhos e sente toda a sua passividade e contemplação. Ela deixa-se matar de livre vontade. É, como o Cristo, um cordeiro que vai ao abate por escolha e sem resistir. Maria profere as condições para sua morte: “A alma é do outro, mas a morte é sua. Será possível?” Tolstói usa essa frase para ilustrar o efeito do pecado. Quer dizer que há na passividade uma vitória e uma liberdade, a salvação que não terá aquele que peca.

Esse evento inusitado, sem explicação ou origem consciente, é o suficiente para transformar Stepan em um ser assombrado pelas suas ações. Em “Uma Confissão”, Tolstói continua sua ideologia com a seguinte frase: “Quaisquer que sejam as respostas da fé, oferecidas a quem quer que seja, toda resposta da fé dá um sentido infinito à existência finita do homem — um sentido que não é destruído pelos sofrimentos, pelas privações e pela morte. Isso significa que, numa fé, é possível acontecer o sentido e a possibilidade da vida”. Aí está a saída de Stepan para o conjunto de pecados que cometeu, uma escapatória para o abismo em que se meteu. Ainda há esperança para aqueles que se arrependem e se convertem. Tolstói cita o episódio dos dois ladrões crucificados ao lado de Jesus em seus últimos momentos. O autor está pregando a conversão por meio de Stepan e usa, ainda, uma espécie de mentor às avessas, companheiro na cadeia, Tchúiev (essencialmente tolstoísta), para dizer que, para além da boa nova em sua vida, este consegue iluminar outras almas por meio de suas ações. Assim como o evento inigualável do olhar passivo de Maria Semiônovna, as expressões de Stepan ou de qualquer cristão tolstoísta praticante podem ser o motivo da mudança de comportamento de qualquer pessoa.

Um ponto extremamente importante: Stepan não sabe ler. Na cadeia, onde conhece “a palavra” bíblica, ele precisa que alguém leia para ele o Evangelho e por isso não quer se afastar de Tchúiev. Tolstói, então, cria um episódio onde Stepan é preso em uma cela isolada para destacar sua necessidade especial. Por causa do Evangelho, Stepan se submeteu. Foi obrigado a aprender a ler. Por causa do Pai Nosso, ele decifrou o código das letras e conseguiu aprender, veja bem, sozinho, a ler. Tolstói chega ao incrível de sugerir que a fé é capaz de fazer essa revolução formidável.

“O Cupom Falso” é tolstoísmo puro. Mais eventos se desencadeiam e todos interligados formam a segunda parte do livro. Nela, as histórias se conectam. Há, ainda, o retorno de Mítia e seu amigo Mákhin, ambos adultos e colhendo os frutos de sua traquinagem. Num episódio particularmente interessante, dois assassinos são condenados à morte e a esposa da vítima, que não nutria mais respeito e amor pelo marido, faz questão de que a justiça seja feita. Mas ao saber que o carrasco se nega a executar os réus porque se converteu ao ouvir a palavra proferida por Stepan, ela se comove e apieda-se deles. É tarde e não é mais possível reverter. O próprio czar é consultado pela mulher sobre o perdão aos criminosos. Como ela os perdoa, entende que isso é o bastante para a autoridade máxima fazer o mesmo. Ao negar o pedido, percebemos que a decisão do czar caracteriza uma crítica de Tolstói às autoridades e seu desprezo pelo sistema judiciário.

O último livro de Tolstói, que foi publicado postumamente, está centrado em alguns dos principais temas filosóficos de sua vasta obra: doutrinação moral, crítica às religiões cristãs e crítica social. É profundamente bem escrito e inspirado. Defende que é possível mudar, que o ser humano pode ser resgatado. Mas defende isso com base em uma doutrina e uma fé. Em suas palavras finais, de seu livro “Uma Confissão”, podemos entender a sua, e somente sua, visão do humano, com todo seu pessimismo intrínseco: “Que na doutrina existe verdade disso eu não tinha dúvida; mas eu também não tinha dúvida de que nela existe mentira, e eu tenho de encontrar a verdade e a mentira, para então separar uma da outra. Foi isso que tentei fazer”. Para uma eventual conversão ao tolstoísmo, eis o seu manual.

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.