Por muitos anos, o faroeste foi sinônimo de narrativas simples e heroicas, mas recentemente o gênero tem se reinventado sob perspectivas ousadas. Em “Ataque dos Cães” (2021), Jane Campion vai além da desconstrução estética, atacando a essência da masculinidade tradicional com uma intensidade rara. Seu filme desafia as convenções ao mergulhar no psicológico e emocional, onde o antagonismo entre força bruta e fragilidade humana se desenrola de maneira sutil, mas impactante.
Benedict Cumberbatch, amplamente reconhecido por papéis sofisticados e excêntricos, surpreende ao interpretar Phil Burbank, um rancheiro áspero e misógino, aparentemente deslocado tanto em suas roupas amarrotadas quanto em sua visão de mundo retrógrada. É um papel que, à primeira vista, não combina com seu histórico de personagens meticulosamente refinados, como o brilhante Alan Turing em “O Jogo da Imitação” (2014) ou o ameaçador Khan em “Além da Escuridão — Star Trek” (2013). No entanto, sua interpretação torna-se uma peça central que sustenta toda a complexidade emocional do filme.
Phil é um homem marcado por traumas não resolvidos, ancorado na memória de Bronco Henry, uma figura ausente, mas onipresente em sua vida. Embora nunca seja mostrado, Henry é o alicerce do comportamento de Phil, uma projeção tóxica da masculinidade que ele tenta desesperadamente preservar. Phil acredita que medo e desprezo são seus maiores escudos contra suas próprias vulnerabilidades. Sua interação com o mundo é abrasiva, como se cada ato de brutalidade reafirmasse sua masculinidade perante si mesmo e os outros.
A tensão aumenta quando seu irmão George, interpretado por Jesse Plemons com uma serenidade quase monástica, traz para casa Rose (Kirsten Dunst), uma viúva delicada, mas resiliente, que administra um restaurante modesto ao lado do filho Peter (Kodi Smit-McPhee). A dinâmica entre os irmãos se transforma: enquanto George encontra amor e conforto, Phil reage com hostilidade crescente, tornando-se uma presença ameaçadora na casa. Campion magistralmente contrasta a rudeza de Phil com a gentileza de George, criando uma dança emocional que oscila entre o ódio e a compaixão.
A peça central de “Ataque dos Cães” é o relacionamento ambíguo entre Phil e Peter. Inicialmente, Phil trata o jovem com desprezo, zombando de sua sensibilidade e inteligência. Contudo, à medida que o filme avança, emerge uma conexão inesperada. Phil vê em Peter um eco de Bronco Henry, e essa identificação lentamente corrói sua fachada impenetrável. O garoto, por sua vez, é astuto e observa o sofrimento de Phil com uma clareza assustadora, percebendo que sua rigidez é, na verdade, uma manifestação de dor reprimida.
Embora o filme mantenha o subtexto homoerótico subentendido, sua presença é inegável. Campion evita explicitar o romance, preferindo sugeri-lo através de gestos, olhares e silêncios, tornando a tensão entre os dois ainda mais palpável. O que começa como uma relação de poder transforma-se em um vínculo complexo, onde desejo e dominação se entrelaçam de maneira perturbadora.
Enquanto Phil luta contra seus demônios internos, sua crueldade se volta contra Rose, que sucumbe ao alcoolismo diante do ambiente tóxico em que é forçada a viver. Sua degradação é tanto um reflexo do domínio de Phil quanto da sua própria luta para proteger Peter de sua influência. O conflito atinge seu ápice quando Peter, com uma calma calculada, vira o jogo contra Phil, revelando uma reviravolta que deixa o público em estado de choque.
Campion não apenas subverte o faroeste tradicional, mas também cria um estudo psicológico profundo sobre o peso das expectativas sociais e os efeitos devastadores da repressão emocional. O filme questiona o que significa ser “forte” em um mundo onde vulnerabilidade é vista como fraqueza. Phil, um homem que se define pela dominação, encontra sua ruína ao permitir que suas barreiras emocionais sejam quebradas, mostrando que, no final, é o próprio veneno que ele abriga em seu peito que o destrói.
Com uma direção primorosa e atuações hipnotizantes, “Ataque dos Cães” é uma obra perturbadora e inesquecível. É um lembrete poderoso de que as feridas invisíveis podem ser tão letais quanto qualquer arma, e que a verdadeira força está em confrontar essas dores de frente, algo que Phil jamais pôde fazer. Campion solidifica seu lugar como uma das mentes mais brilhantes do cinema contemporâneo, mesmo que suas aparições sejam, infelizmente, esporádicas.
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