Certa vez, William Faulkner (1897-1962) afirmou: “O passado não está morto. Na verdade, ele nem sequer passou”, uma máxima que encontra eco na sensibilidade com que Walter Salles adapta o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui”. Logo no início da trama, somos imersos na atmosfera dos anos 1970, em uma reconstrução histórica e emocional tão cuidadosa que o espectador se sente parte da família Paiva, compartilhando cada emoção intensa e genuína. A produção captura não apenas a estética e os costumes da época, mas também a complexidade das relações familiares, das amizades e dos vínculos românticos, conferindo a essas interações uma verossimilhança que ultrapassa a tela. Walter Salles entrega uma obra que, ao mesmo tempo, nos faz perceber o quão próximos estamos de nosso passado e o quanto ele ainda nos molda, mesmo quando parece tão distante da realidade contemporânea.
Com uma narrativa que entrelaça memórias e eventos históricos, o roteiro de “Ainda Estou Aqui” mergulha no impacto devastador do desaparecimento forçado de Rubens Paiva, explorando como a ausência física e a presença simbólica do marido transformam a dinâmica familiar e desafiam a coragem de Eunice. Eunice, mãe e dona de lar dedicada, vê seu mundo virar de cabeça para baixo quando homens armados chegam à sua casa à procura do deputado Rubens Paiva. No mesmo instante, ele nega o cargo político, mas, ainda assim, é levado pelos agentes, e essa acaba sendo a última vez que a família Paiva esteve com Rubens. A partir desse momento, a atmosfera do filme sai daquele ambiente familiar e caloroso para se tornar tensa. A sensação é quase a de um grito preso que não pode ser liberado de forma alguma.
No dia seguinte ao desaparecimento de Rubens Paiva, Eunice e sua filha, Eliana, são convocadas ao quartel sob o pretexto de prestarem esclarecimentos. O que deveria ser uma breve visita rapidamente se transforma em um período de detenção de dez dias, marcado por tensão e incerteza. A partir de então, Eunice direciona toda a sua energia para desvendar o paradeiro de Rubens, enquanto assume o papel de pilar emocional para seus cinco filhos, em um contexto de intensa repressão política. Sob constante vigilância de agentes do regime, a situação piora quando a mascote da família é atropelada — um episódio que Eunice interpreta como uma ameaça velada. Decidida a proteger seus filhos, ela resolve deixar o Rio de Janeiro e buscar um novo começo em São Paulo. A mudança representa não apenas uma tentativa de escapar da vigilância, mas também um esforço para reconstruir a vida da família diante da certeza crescente de que Rubens jamais retornará. A transição, contudo, não significa um esquecimento; a ausência do marido e pai se torna uma presença constante, simbolizando tanto a perda quanto a resistência em meio ao silêncio imposto pela ditadura militar.
A atuação de Fernanda Torres na pele de Eunice Paiva é extremamente minuciosa e, de certa forma, complexa, uma atuação que não apenas serve à trama, mas a define, tornando impossível dissociar a jornada emocional do filme da presença visceral e magnética que a atriz oferece. Com uma precisão quase cirúrgica, Torres constrói sua personagem com camadas que se revelam de forma gradual e inquietante, gerando uma tensão crescente que parece impregnar cada cena. Nas poucas cenas em que Rubens aparece, Selton Mello domina completamente a tela, entregando uma atuação profundamente marcante. Sua interpretação é capaz de evocar um mix avassalador de sentimentos no espectador — indignação pela injustiça enfrentada, tristeza diante da tragédia iminente e uma compaixão que ultrapassa a narrativa, obrigando-nos a nos colocarmos no lugar da família. O ator captura, de forma impressionante, a humanidade e a força de Rubens, tornando sua breve presença na trama ainda mais significativa e emocionalmente impactante.
O filme “Ainda Estou Aqui” é um espetáculo de atuação, profissionalismo e história, que vai além de uma narrativa pessoal e íntima para abordar questões de memória e justiça. Ele reflete a importância de compreender o passado não como algo distante, mas como uma força que continua a nos moldar e guiar. O filme é um relato impactante sobre a dor de uma família que perdeu um pai nas garras de um regime autoritário, enquanto também se apresenta como um microcosmo do período da ditadura militar no Brasil. Mais do que uma reconstrução histórica, “Ainda Estou Aqui” é uma ode à resistência, à força de quem permanece e à importância de não esquecer os que foram silenciados durante um dos capítulos mais sombrios da história do país. Salles combina a intensidade emocional com um retrato fiel da época, evocando tanto o sofrimento quanto a determinação de uma sociedade em busca de verdade e justiça.
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