Qualquer palavra sobre “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, soa superficial. Dizer algo sobre essa obra monumental sem mergulhar em suas profundezas é como tentar descrever o oceano observando uma poça. Afinal, como condensar um trabalho que consumiu sessenta anos da vida de um dos maiores gênios que a humanidade já produziu? Goethe não apenas escreveu “Fausto”; ele viveu “Fausto”. Sua obra não é apenas um livro — é um pacto com o eterno, uma celebração do homem, da dúvida, da queda e da redenção.
“Fausto” não é uma invenção de Goethe, mas um mito que atravessa séculos, remendado por mãos diversas antes de ser transfigurado pelo autor de Weimar. Já no século 16, a figura do Dr. Fausto — o alquimista que vende sua alma ao demônio em troca de conhecimento e poder — perambulava pelas margens da história e da ficção. Goethe não apenas o apropriou; ele o universalizou. Walter Benjamin afirmou que Goethe é “a imagem perfeita de um gênio” porque foi capaz de captar o espírito do mito e transformá-lo em algo mais vasto, mais profundo, mais humano.
Seria exagero dizer que Goethe era, ele mesmo, um ser fáustico? Não creio que seja exagero. Ele desejava conhecer tudo, explorar tudo, abarcar a totalidade da experiência humana e do saber. Suas investigações iam da poesia à botânica, da óptica à política, da geologia à filosofia. Goethe é, nesse sentido, o próprio Fausto: inquieto, insaciável, condenado a buscar. Não se contentava com meias-verdades ou com fragmentos de luz; queria o todo. Esse espírito fáustico não é apenas uma curiosidade intelectual: é uma forma de existir no mundo, uma recusa em aceitar os limites impostos pela finitude.
Se Gustave Flaubert gastou quase uma década moldando “Madame Bovary”, Goethe superou todas as marcas conhecidas. Ele dedicou sua vida inteira a “Fausto”. Começou nos fragmentos juvenis, transitou pelo “Fausto 1” (publicado em 1808), culminando no monumental “Fausto 2”, publicado postumamente em 1832. Em seus sessenta anos de labor, o texto cresceu, tomou corpo, respirou. Tornou-se, mais do que uma obra literária, um organismo vivo. É como se Goethe, ao construir “Fausto”, estivesse também esculpindo sua própria alma.
Nesta obra o leitor não encontrará apenas uma narrativa sobre o homem que faz um pacto com Mefistófeles. Encontrará a condição humana em toda a sua ambivalência. É um poema sobre a busca por sentido em um mundo fragmentado. É sobre o desejo de transcender e a queda inevitável na trivialidade do mal. É sobre o preço da curiosidade, sobre a tensão entre o que queremos e o que podemos ser. Friedrich Schlegel dizia que Goethe captava “o universal na forma do particular”. Nada é mais verdadeiro em “Fausto”: ele é um mito individual e, ao mesmo tempo, a metáfora de todos nós.
As ressonâncias de “Fausto” na literatura brasileira são inegáveis. Machado de Assis, em “Dom Casmurro”, talvez tenha emprestado a dualidade de Mefistófeles para a construção de Bento Santiago, dividido entre a verdade e suas paixões mais sombrias. Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”, dialoga com o tema do pacto, explorando as fronteiras entre o divino e o diabólico. Até mesmo Drummond, com seu “Sentimento do Mundo”, carrega algo do desencanto fáustico: a eterna negociação entre o ideal e o real, entre a pureza dos sonhos e a sujeira da história.
Walter Kaufmann, em “A Filosofia do Existencialismo”, percebe em “Fausto” algo que o aproxima do projeto nietzschiano: a celebração do homem como criador de valores. Fausto é um homem que se atreve a negociar com o próprio diabo. Ele transgride, mas não por capricho; transgride porque busca. Essa busca é, para Goethe, a essência da humanidade. Se há algo que redime Fausto ao final do poema, não é sua virtude, mas seu movimento, seu desejo insaciável de ir além.
No “Fausto 2”, há uma riqueza de imagens e ideias que ultrapassam o entendimento imediato. É ali que Goethe parece dialogar não apenas com seu tempo, mas com o futuro. A tentativa de Fausto de criar uma utopia à beira-mar, sua cegueira, sua morte e sua salvação final são metáforas de um projeto humano que é, ao mesmo tempo, grandioso e trágico. É como se Goethe nos dissesse: mesmo cegos, tropeçando em nossa própria ambição, somos redimidos pelo simples fato de tentar.
Escrever sobre “Fausto” é um ato de humildade e arrogância. Humildade, porque o texto nos supera em todas as dimensões; arrogância, porque, mesmo assim, nos atrevemos. Mas talvez seja essa a lição última de Goethe: continuar, buscar, escrever, fazer com que cada leitura da obra seja, para nós, um pacto renovado com o eterno.
A magnitude do texto de Goethe também reside em sua estrutura. No “Fausto 1”, a tragédia de Margarida — ou Gretchen, no original — é central. Este primeiro ato é visceral, humano, próximo de nossas dores mais íntimas. Gretchen, seduzida e abandonada, carrega uma força trágica que rivaliza com as maiores heroínas da literatura mundial. Já o “Fausto 2” se afasta desse tom, expandindo-se para questões universais: o tempo, a política, o progresso, a utopia. Como Goethe conseguiu conciliar o íntimo e o cósmico? Eis o mistério. Walter Benjamin, em “Origem do Drama Barroco Alemão”, talvez tenha encontrado uma pista ao afirmar que Goethe cria mundos que oscilam entre o particular e o eterno.
Não é de surpreender que este livro repercuta tanto em nossa literatura quanto em nossa filosofia. Quando li “Grande Sertão: Veredas” pela primeira vez, não pude deixar de enxergar Riobaldo como uma figura fáustica: alguém que negocia com forças maiores que ele para tentar compreender o incompreensível. Do sertão ao pacto, do jagunço ao demônio, a busca por sentido é universal. Talvez seja isso que Goethe nos ensina: “Fausto” é sobre todos nós, porque todos buscamos algo além do que podemos alcançar.
Se Goethe passou uma vida inteira dedicado a “Fausto”, é porque sabia que essa era sua obra de destino. Não se trata apenas de uma narrativa, mas de uma catedral literária, um monumento ao espírito humano, como a “Recherche…” foi para Proust. Ler “Fausto” é mais do que um ato intelectual; é um compromisso existencial. Ao final, quando Fausto encontra sua redenção não na perfeição, mas no movimento, compreendemos que Goethe não escreveu para uma época, mas para a eternidade. Nós, leitores, somos os cúmplices desse pacto. Que não o rompamos.
A figura histórica do Dr. Fausto, que inspirou o mito, já era fascinante por si só. Médico, alquimista e homem de interesses múltiplos, viveu no século 15 e rapidamente se tornou uma lenda. Sua fama e fortuna alimentaram especulações de que teria feito um pacto com o diabo para alcançar poder e conhecimento. Aqui, o histórico e o mítico se entrelaçam. O Dr. Fausto real, com suas ambições científicas, já era, em sua essência, um precursor do Fausto literário: um homem que ousa ultrapassar os limites do humano, mesmo que isso signifique desafiar as forças do desconhecido.
Foi a partir de um livro popular anônimo, que começou a circular pela Alemanha no século 16, que o mito de Fausto ganhou força. Traduzido para o inglês, inspirou Christopher Marlowe a criar sua peça “A trágica história do Doutor Fausto”. Goethe, que cresceu imerso na cultura alemã, leu tanto o livro popular quanto a obra de Marlowe. Mas o que ele fez com esse material é um testemunho de sua genialidade: transfigurou uma lenda simples e moralizante em um épico sobre a condição humana. Vale lembrar que Gotthold Ephraim Lessing também cogitou escrever sobre Fausto, mas com uma abordagem iluminista, recusando a danação como destino necessário.
A transformação do mito fáustico ao longo dos séculos reflete mudanças nas sensibilidades culturais. Durante o Iluminismo, Lessing viu em Fausto não um pecador, mas um herói do saber, alguém que ousava buscar conhecimento em um mundo de dogmas. Já Goethe, no Romantismo, recuperou a complexidade da figura: nem condenado, nem redimido de imediato, mas eternamente em busca. É fascinante observar como cada época projeta seus medos, esperanças e dilemas no personagem. O Fausto iluminista busca saber como um ato de liberdade; o fáustico romântico, como um ato de desespero.
No centro da tragédia de Goethe está uma questão fundamental: o que significa ser humano? Fausto é o homem que vislumbra o saber absoluto, mas que, por sua própria natureza, nunca pode alcançá-lo plenamente. Aqui reside a força do mito: ele é tanto uma celebração do desejo humano quanto uma advertência sobre seus limites. A pergunta que move Fausto — “Qual é o sentido da vida?” — continua a ecoar em nossa própria busca contemporânea por respostas.
A relação entre Fausto e Mefistófeles é outro ponto crucial. Mefistófeles não é um demônio comum; ele é irônico, sagaz, muitas vezes cômico. Ele sugere o pacto, mas a aposta que realmente move a narrativa é uma iniciativa de Fausto. Este propõe um jogo: se Mefistófeles conseguir fazê-lo encontrar um momento de satisfação plena, em que ele deseje que o tempo pare, então sua alma estará perdida. Não é o pacto em si que define a obra, mas essa aposta existencial, que encapsula a essência do espírito humano: a recusa de se contentar, a busca incessante pelo mais.
Essa aposta não é apenas uma artimanha narrativa; é uma metáfora para a condição humana. Somos, como Fausto, eternamente insatisfeitos, incapazes de encontrar repouso em nossos triunfos, sempre projetados para o futuro. Mesmo quando alcançamos algo grandioso, já estamos ansiando por mais. Goethe capta essa inquietação com uma clareza impressionante, mostrando que o que nos define não é o que conquistamos, mas o que desejamos.
A magia, no universo de Goethe, é tanto um recurso narrativo quanto uma metáfora para a busca de transcendência. O pacto de Fausto com Mefistófeles é um acordo entre o humano e o além-humano, entre o possível e o impossível. Mas é a aposta que dá à obra sua profundidade filosófica. Fausto não quer apenas conhecimento ou prazer; ele quer um sentido que seja absoluto. Mefistófeles aposta na incapacidade humana de alcançar esse absoluto.
O “Fausto 2” expande essa discussão para o âmbito coletivo e político. Se no primeiro Fausto busca sentido em sua vida individual, no segundo ele tenta criar uma utopia para a humanidade. Mas mesmo ali, ele fracassa, cegado por sua própria ambição. E é redimido. Por quê? Porque nunca parou de buscar. Para Goethe, a salvação de Fausto não está em seus triunfos, mas em seu movimento, em sua inquietação.
Goethe oferece uma resposta complexa ao mito fáustico: não somos salvos pelo que sabemos ou fazemos, mas pelo fato de nunca desistirmos de buscar. O movimento, a busca, o desejo insaciável são o que nos torna humanos. É por isso que Fausto é redimido, mesmo depois de seus erros e excessos.
“Fausto” continua a ressoar porque é uma obra que convida à reflexão. É, como disse Thomas Mann em “Ensaios de Literatura”, uma obra que exige de nós não apenas inteligência, mas coragem. Coragem para enfrentar nossas próprias perguntas sem garantias de respostas.
Escrever sobre “Fausto” é mais do que um exercício acadêmico ou intelectual; é uma meditação sobre o que significa estar vivo e também uma aposta esperançosa, quase fáustica: eu serei menos insignificante se esse texto levar uma só pessoa que seja a ler a obra de Goethe. E talvez seja isso que o alemão absoluto, em sua grandeza, quis nos ensinar: que a vida não é um destino, mas uma aposta. E nós, como Fausto, seguimos jogando. Napoleão, quando conheceu Goethe e com ele conversou por algumas horas, disse aos presentes, impressionado: “Eis aqui um homem”.
O “Prólogo no Céu” é um dos momentos mais intrigantes da obra. Aqui, vemos outra aposta, desta vez entre Deus e Mefistófeles. A disputa é cósmica: enquanto Deus acredita no potencial do homem, mesmo com suas fraquezas, Mefistófeles o vê como um ser irremediavelmente falho, incapaz de resistir às tentações do mundo. É essa tensão entre a fé divina na humanidade e o ceticismo diabólico que dá o tom de toda a peça.
Os prólogos são fundamentais para compreender a obra. Um estabelece o plano celestial, onde se desenrola a aposta divina. Outro, metalinguístico, discute as próprias questões da produção artística. Nele, Goethe reflete sobre os desafios da criação e os limites da representação teatral, como se dissesse ao público: o que vocês assistirão não é apenas uma peça, mas uma meditação sobre a arte, a vida e o próprio ato de contar histórias. O teatro aqui é palco da vida, e a vida se torna o teatro de nossas buscas e angústias.
Na aposta celestial, Deus permite que Mefistófeles leve Fausto em sua jornada. Mas há uma certeza divina: o homem, com todos os seus erros, será conduzido à luz. Essa convicção reflete a visão otimista de Goethe sobre a humanidade, mesmo quando parece imersa no caos. Mefistófeles representa o cinismo, a negação da capacidade humana de transcender suas limitações. Fausto se torna o campo de batalha entre essas duas forças, e o desenrolar da obra é a materialização desse conflito.
Na terra, a aposta é outra. É uma batalha pela alma de Fausto, mas também uma reflexão sobre as escolhas e ações humanas. Aqui, o personagem não é apenas um indivíduo, mas o porta-voz das ambições, dúvidas e esperanças de todos. Ele quer tudo: saber, poder, prazer. E, nessa busca incessante, ele comete erros, destrói vidas, desafia leis morais. Mas é justamente essa inquietação que o define como humano.
No final, as apostas celestiais e terrenas se desdobram de formas diferentes. No plano celestial, Deus vence. Fausto, apesar de seus erros, é redimido e alcança o céu. É uma reafirmação da visão divina de que o movimento — a procura, a ação, o desejo de transcender — é o que vale. Porém, na terra a resposta não é tão clara. A tragédia do herói é também a tragédia da humanidade: estamos sempre buscando, mas jamais alcançamos completamente.
O último epílogo, com a ascensão de Fausto ao céu, sela a vitória de Deus. Mas, como toda obra de Goethe, essa vitória não é simples nem maniqueísta. Não se trata de uma redenção plena, mas de uma conquista arduamente alcançada, na qual o erro e o arrependimento desempenham papéis centrais. Fausto é salvo não por suas ações, mas por sua inquietação, por sua recusa em se resignar à mediocridade.
Fausto quer tocar o eterno, mas o que realmente o move é a procura. A peça nos ensina que a vida não é definida por suas respostas, mas por suas perguntas. O sentido da vida, segundo Goethe, está na ação, na criação, no movimento. É por isso que Fausto, apesar de seus fracassos, é uma figura triunfante: ele nunca para, nunca se acomoda, nunca aceita os limites impostos.
A edição da Editora 34 oferece aos leitores brasileiros uma oportunidade ímpar de mergulhar nessa obra monumental. A tradução de Jenny K. Segall é um triunfo, ousando traduzir em verso sem perder a profundidade e a musicalidade do texto original. As notas explicativas iluminam os momentos mais desafiadores, tornando acessíveis as camadas de significado que permeiam o texto. E a colaboração de Marcus Mazzari, um dos maiores germanistas brasileiros, garante uma leitura rica e informada, que dialoga com a tradição crítica internacional.
Tive a honra e a sorte de estudar com Mazzari na USP, em uma disciplina que conectava o “Fausto” de Goethe ao “Dr. Fausto” de Thomas Mann e ao “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. Foi uma experiência transformadora, que me mostrou como o mito fáustico ressoa em diferentes tempos e espaços, sempre nos desafiando a refletir sobre nossas próprias buscas, e de como um professor pode se dedicar, de maneira fáustica e goethiana, por toda a sua vida, a uma figura, a um livro. Depois de uma aula com Marcus Mazzari, a única palavra que ressoa em sua mente é “Goethe. Goethe. Goethe”.
Goethe nos deixou um legado que transcende fronteiras culturais e linguísticas. Sua visão da humanidade — como errante, mas redimível; falha, mas gloriosa em sua inquietação — continua a ser determinante em todo o mundo. E “Fausto”, com sua profundidade inesgotável, permanece uma obra para ser lida e relida ao longo da vida, sempre revelando novos significados.
O Brasil, em particular, deve aproveitar esta edição para se reconectar com Goethe e com o mito fáustico. Em um momento de tantas incertezas, Fausto nos lembra que o sentido da vida não está em respostas prontas, mas na coragem de buscar, na audácia de errar, no movimento incessante rumo ao desconhecido.
Encerrar um texto sobre Fausto é como tentar aprisionar o infinito em palavras. Que possamos, como Fausto, buscar sem cessar, errar sem medo, e criar sem limites. Pois, no final, como nos mostra o “Prólogo no Céu”, é na aposta da humanidade que reside o mistério da existência.
A vastidão do universo da obra nos desafia a explorar suas implicações filosóficas. Na aposta celestial, a ideia de que Deus permite a queda para que o ser humano possa ascender é um conceito profundamente ligado às tradições cristãs. Fausto, como um representante da humanidade, encarna tanto a tragédia quanto a glória do ser humano: falhamos, mas somos salvos pela nossa própria busca. É um paradoxo essencial que transforma o personagem em um espelho de todos nós.
No entanto, a vitória de Fausto no plano celestial contrasta com os dilemas não resolvidos do plano terreno. A humanidade permanece atolada em contradições e incertezas. O pacto com Mefistófeles, que impulsiona a trama, simboliza nossas escolhas ambíguas, nossos pactos diários com as forças do mundo, que ora nos elevam, ora nos arrastam ao erro. Por isso a obra permanece atemporal: suas questões ressoam tanto no século 19 quanto no 21, pois o que nos define como humanos não é a certeza, mas a pergunta.
Terminar a leitura de “Fausto” não é o fim de uma jornada, mas o começo de outra. Cada releitura revela novas camadas, novas perguntas, novos dilemas. Somos desafiados a nos lançar nesse labirinto literário. E, como Goethe nos mostra, a resposta não está no fim da jornada, mas no próprio ato de buscar. Que a humanidade nunca perca essa inquietação — pois é nela que reside nossa verdadeira redenção. Leiam Goethe! Leiam “Fausto”!