Em tese, estamos perdidos

Em tese, estamos perdidos

Saudações, estranhos. Por um descaso do destino, estando o dito pelo maldito, vim parar nesse impensável conclave de poetas, andarilhos e outros seres desencantados. Estamos juntos e misturados. Em tese, absolutamente perdidos. Há um consenso, contudo, de que viver nada mais é do que calcular os próximos passos; tropeçar pelo caminho. Em dado momento — eu não nego — caio em contradição pela terceira vez e pressinto o dedo de Cristo testando as chagas das minhas dúvidas. Que devaneio. Divido dívidas com uma puta mulher que me pariu filhos algo assim… desequilibrados. “Saíram ao pai”, é o que ela diz quando não há mais nada a dizer. Sabeis como é: o amor, às vezes, fica sem assunto. Pode ser que o mundo careça de mais esforço pra gente afrouxar as porcas dos pensamentos nas gangorras da mente. Eu não minto pra mim. Eu nunca minto pra mim. Só de vez em quando é que eu minto pra mim. Tá ok, eu às vezes me engano. O bem querer tem lá os seus altos e baixos. Sinto um bocado de cumplicidade ao respirar o ar enfumaçado deste ambiente decrépito onde poetas inveterados e outros entes decadentes fumam-se mutuamente até a guimba. Acesos pelas faíscas das sinapses, neurônios em combustão alumiam-me o escuro. É claro que eu procuro uma saída. Eu juro. Da última vez que surtei por causa de um fenômeno obscuro, chamei pessoas desconhecidas de “meus irmãos, meus irmãozinhos”. Que fanatismo. Que fanatismo esse senso de humanidade impregnado nos homens. Não imaginais o quanto me alivia esse ar de resignação vincado em vossos rostos. Fazeis um bem miserável ao meu fígado. Nódias de pertencimento, eu diria. Saúdo-vos, estranhos, irmãos, meus irmãozinhos. Agradeço-vos por me escutar, como se esse coração infame fizesse parte do mesmo enxame de moscas da fé que beliscam a carne do homem. Da próxima vez que acenderdes uma chama de esperança, chamai-me. Já caí muitas vezes — eis mais um desígnio dos caminhos — mas, não sou eu quem vai assoprá-la.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.