A filosofia negativa do Radiohead Foto / Christian Bertrand

A filosofia negativa do Radiohead

Chico Buarque gosta de contar a anedota de que criou, sem querer, o nome de batismo do grupo inglês Radiohead. Segundo ele, a expressão aparece na canção “O Último Blues”, cantada por Gal Costa na Ópera do Malandro” (1985). “A figura dela fosforesce/ Ao som do último blues/ Na Rádio Cabeça/ Se puder esqueça/ A menina que você seduz”, diz a letra buarqueana, que mescla o lirismo e a melancolia característicos do compositor. Uma letra que foi pouco percebida e lembrada pelos admiradores do cantor.

Quem prestou muita atenção à “rádio cabeça” foi David Byrne, líder dos Talking Heads e que frequentava o Brasil na época. O grupo dele ocupou o lugar de ser a maior referência do que poderia ser um rock inteligente. Nos anos 1980, ele estava fascinado pela efervescência cultural do país e achava que “rádio cabeça” fosse um termo popular — e não uma criação de Chico Buarque. Em 1986, inspirado pela expressão, compôs a canção “Radio Head” para a trilha sonora de seu filme “True Stories”.

Thom Yorke
Thom Yorke: o coração da inquietação criativa do Radiohead | Foto: Christian Bertrand

O refrão que celebra um som fresco e inovador — “Transmissor!/ Oh! Apanhando algo legal/ Ei, rádio cabeça!/ O som…de um mundo novinho em folha” – ecoa tanto o experimentalismo de Byrne quanto a criatividade buarqueana. Estava formada, então, uma ponte sonora que liga o Rio de Janeiro a Nova York, com destino final em Oxford. Na Inglaterra, alguns anos depois, um grupo de jovens músicos reinventaria esse espírito de forma única e criaria um fenômeno musical.

A ideia da “rádio cabeça” chegou aos ouvidos do inglês Thom Yorke e seus amigos, que fundaram na década de 1990 o megagrupo Radiohead. O nome, retirado diretamente da canção de Byrne, carrega uma carga simbólica: uma ligação invisível entre tradições musicais que se cruzam no rock, no jazz e na eletrônica. O Radiohead talvez seja a última banda de rock no sentido clássico, surgida numa era em que o disco físico e as multidões nos estádios ainda moldavam a cultura musical.

A trajetória da banda começou de forma relativamente convencional, com os discos “Pablo Honey” (1993) e “The Bends” (1995), que exibem um rock alternativo enérgico, mas ainda preso às convenções da época. Mesmo assim, músicas como “Creep” (clássico contemporâneo da música pop), “High and Dry” e “Fake Plastic Trees” já indicavam algo distinto. Havia ali um tom delicado, frágil, que flertava com vulnerabilidade, inquietação e sentido de urgência que se acentuou ao longo dos anos.

Filosofia do rock

A guinada do Radiohead veio em 1997 com o disco “OK Computer”, uma obra que o escritor e pensador Mark Greif descreve como o manifesto de uma era marcada pela tensão entre a tecnologia e a humanidade. Ele classificou o álbum como uma maneira de filosofar por meio do pop. E esse “filósofo” está na figura de Thom Yorke. Com suas letras angustiadas e paisagens sonoras que oscilam entre o belo e o perturbador, o álbum expõe as fissuras de um mundo em rápida transformação.

OK Computer
OK Computer: o álbum que redefiniu o rock dos anos 1990, antecipando as tensões entre tecnologia e humanidade

Para Greif, a voz dolorosa de Thom Yorke, os arranjos eletrônicos e as letras críticas traduzem a sensação de deslocamento de uma geração que começava a viver sob a sombra do capitalismo digital e da globalização. O otimismo dos anos 1990, pós-queda do Muro de Berlim, deu lugar ao choque de realidade que culminou nos primeiros protestos antiglobalização. “OK Computer” não só antecipa as preocupações da virada do milênio, como captura o sentimento coletivo de desconforto.

Nos anos seguintes, o Radiohead levou essa busca a novas direções. Os álbuns “Kid A” (2000) e “Amnesiac” (2001) radicalizam o estranhamento. E quanto mais esquisito, mais o grupo aglutinava fãs. O crítico musical Alex Ross (o mais completo da atualidade), chamou Kid A de “música para o colapso”, ao refletir a instabilidade do início do século 21. O Radiohead, na visão de Ross, transforma a angústia da época em arte, o que assim permite a coexistência do sublime e do dissonante.

O movimento do Radiohead deu passos adiante com “In Rainbows” (2007), um álbum ao mesmo tempo introspectivo e caloroso. Ross observa o resgate de algo de profundamente humano, em meio à frieza e ao caos contemporâneo. Melodias delicadas, arranjos intrincados e letras ambíguas se combinam para criar a obra que envolve o ouvinte tanto emocional quanto intelectualmente. Não há concessão ao sentimentalismo, mas sim uma entrega à complexidade das experiências humanas.

O mais recente lance de Thom Yorke é o grupo The Smile. Já são dois discos nos quais segue o radicalismo da experimentação musical. É como se o grupo não desse a mínima bola se o público vai gostar ou não do resultado. A sonoridade é nervosa, puxando para recursos da eletrônica e pela improvisação do jazz. O companheiro de viagem de Yorke é Jonny Greenwood, um dos guitarristas do Radiohead e hoje um exímio compositor de trilhas sonoras para filmes (“Sangue Negro”, “Ataque dos Cães”).

Paixão pelo negativo

O jeito de ser do Radiohead não se limita à sonoridade da música. O que vem junto dos sons são letras que carregam uma postura crítica diante do mundo. Enquanto artistas como Bono Vox, do U2, oferecem um otimismo esperançoso, Thom Yorke e seus companheiros abraçam a dúvida e um pessimismo como elemento constitutivo. O tom melancólico que emanas das guitarras, teclados e vozes ganha acompanhamento de uma visão negativa. É preciso esmiuçar o que há de negativo nas coisas.  

Jonny Greenwood

Jonny Greenwood: guitarrista e compositor brilhante, combina melodias com harmonias que desafiam os sentidos

Mark Greif argumenta que a postura negativa não é mera resignação, um convite a ficar paralisado. Seria uma forma de resistência ao discurso redentor (capitalismo, tecnologia) que mascara contradições da realidade contemporânea. Paradoxalmente, é na recusa em oferecer respostas que a banda encontra seu impacto junto ao público. Quando reconhece a dificuldade de se situar no mundo fragmentado, o Radiohead dialoga diretamente com os dilemas das pessoas e do planeta.

O Radiohead é um caso raro e atual de banda de rock que alia experimentação estética, relevância cultural e senso ético. Sua música não se limita a refletir o desconforto do tempo atual — o que muita gente já faz. O grupo chama o ouvinte para ver incertezas e a encontrar, nelas, um terreno fértil para pensar. A “rádio cabeça” continua sintonizada e pronta para o pensamento. É ela que conecta ideias e lugares com a mesma intensidade que caracteriza a trajetória de Thom Yorke.

A conexão entre o Radiohead e o Brasil não é apenas uma curiosidade — como na anedota de Chico Buarque. Ed O’Brien, guitarrista da banda, passou o ano de 2012 em uma fazenda em São Luiz do Paraitinga, no interior de São Paulo. Seu disco solo, lançado em 2019, incluiu a música “Brasil”, que reflete sua imersão na cultura local. Essa ligação inesperada entre o interior paulista e Oxford é um exemplo vivo de como as influências culturais podem cruzar fronteiras e criar diálogos inesperados.