Certos segredos só devem ser contados aos amigos e amigas que realmente merecem conhecê-los ou estão preparados para absorvê-los. Na música pop e no rock, uma das melhores e mais delicadas revelações a serem compartilhadas é o cantor e compositor inglês Nick Drake. Morto precocemente aos 26 anos de idade, em novembro de 1974, sua vida breve e misteriosa contrasta com a profundidade e longevidade de sua obra.
Ninguém sai igual depois de ouvi-lo, mesmo 50 anos após sua morte. Drake é um daqueles artistas que, ao serem descobertos, tornam-se companheiros de vida para quem se conecta com sua melancolia elegante e profunda. Ele se torna, de fato, um segredo pessoal. No Brasil, quem conhecia bem Nick Drake era Renato Russo, o líder do grupo Legião Urbana, também tragicamente marcado por uma morte prematura.
Em sua busca incessante por referências musicais e literárias, Russo gravou, no final da vida, uma versão de “Clothes of Sand”. Trata-se de uma joia rara que ficou de fora dos três discos lançados por Drake em vida, mas que mostra a potência de sua música, até mesmo frágil, aparentemente. Renato estabeleceu um elo entre a introspecção melódica de Drake e o lirismo que marcou sua própria obra final.
Nick Drake deixou três álbuns completos em sua impressionante carreira: “Five Leaves Left” (1969), “Bryter Layter” e “Pink Moon” (1972). Cada um deles é um universo em si e traz camadas sonoras que, a partir de poucos elementos, desafiam o ouvinte. Num movimento inesperado, Drake optou por criar um som que fugia do frenesi do rock psicodélico e da explosão comercial da música dos Beatles e Rolling Stones.
Ao invés de viagens lisérgicas e rocks duros, Drake escolheu o caminho introspectivo e minimalista. O violão folk gerava arranjos delicados de cordas, casados aos sutis toques de pianos de jazz. O estilo, já pós-Bob Dylan em sua essência, dialogava diretamente com os trabalhos igualmente inovadores de Leonard Cohen e Van Morrison, especialmente no sofisticado disco “Astral Weeks” (1968) deste último.
Paisagens sonoras
A conexão entre Van Morrison e Nick Drake está na forma como utilizam as noções de espaço na música. Eles transmitem sentimentos de pertencimento e deslocamento. Para Geoff Munns, que o estudou a fundo, Morrison explora memórias de lugares reais com construções imaginativas. Em “Astral Week” o quarto de um adolescente é um espaço simbólico de introspecção e identidade.
As canções de Drake evocam também paisagens internas de melancolia, muitas vezes relacionadas à sensação de isolamento físico e espiritual. Ambos os artistas criam “paisagens sonoras” que ampliam a experiência dos lugares mencionados nas letras. Morrison usa instrumentos e estilos que ecoam raízes na Irlanda, enquanto Drake traz sons delicados que refletem influências como o folk, a bossa nova e o jazz.
A forma como trabalham ideias de deslocamento e exílio os aproxima. Morrison explora a tensão entre “lar” e “distância”. É o que se percebe em “Saint Dominic’s Preview” (disco de 1972), no qual a casa é um lugar de segurança e saudade, nota Munns. Já Drake traduz essa dualidade no intimismo que carrega uma tristeza intrínseca, como se suas composições fossem diálogos com um mundo perdido ou uma terra desolada.
Leonard Cohen se liga a Drake na questão da temporalidade. Segundo Natalia Vesselova, que analisou a obra do canadense, ele constrói uma filosofia do tempo em torno da relação com o passado. Ele vê o que se passou como um território de exploração e mitificação, um campo onde memórias pessoais e coletivas são entrelaçadas em busca de significado e identidade. O resultado é um sentimento de tempo deslocado.
Nick Drake opera nessa temporalidade ambígua. Suas composições evocam um senso de nostalgia que, assim como a obra de Cohen, parece existir num espaço em suspenso. A melancolia de “Pink Moon”, por exemplo, está expressa nos arranjos minimalistas e letras introspectivas. Com isso, encontra eco na abordagem de Cohen ao passado como algo irrevogável e que não pode ser mudado.
Influenciado por tradições judaicas e pela poesia persa, Cohen constrói canções quase como orações ou liturgias, o que direciona sua música para uma contemplação. De forma semelhante, a música de Drake tem uma simplicidade aparente que leva o ouvinte a revisitar memórias e emoções pessoais. Não é por acaso que os dois músicos são figuras carimbadas nas trilhas de filmes ambientados nos anos 1970.
É interessante observar a confluência de sons e sentimentos nas músicas de Drake, Morrison e Cohen. Eles parecem figuras fora de seu tempo, e talvez por isso se conectem tanto aos dias de hoje. Não gosto particularmente de expressões como “atemporal”, “clássico” e “universal”, porque buscam uma noção vazia de transcendência – daí para se chegar a leituras religiosas é um passo e um caminho certo para o erro.
Bossa nova
Ainda havia algo único em Drake. Trata-se da leveza e da precisão que ele trouxe ao violão, atributos que remetem à bossa nova do brasileiro João Gilberto. Segundo Pete Paphides, autor de um bom estudo sobre Drake, ele era um admirador declarado da música brasileira, e suas composições parecem ecoar aquela cadência flutuante e introspectiva que caracteriza a obra gilbertiana.
A influência bossanovista, somada à sofisticação de artistas como o inglês Jake Thackray e o francês Jacques Brel, conferiu às canções de Nick Drake uma atmosfera própria. Na formação dele, a França desempenhou um papel crucial. Em 1966, antes de ingressar na Universidade de Cambridge, ele passou um ano em Aix-en-Provence, no sul do país.
Lá, viveu como um jovem errante: tocava violão nas ruas, lia avidamente escritores como Sartre e absorvia o clima intelectual boêmio da época. Essa temporada francesa culminou até numa viagem ao Marrocos, onde Drake teve encontros com Mick Jagger e Keith Richards. Os astros dos Rolling Stones exploravam na época as sonoridades e os vários misticismos do norte da África.
A morte de Nick Drake em 1974 permanece misteriosa. Oficialmente, foi um acidente por overdose de antidepressivos. O fato de que seu livro de cabeceira era “O Mito de Sísifo”, de Albert Camus, uma obra que reflete profundamente sobre o suicídio, alimenta especulações sobre o verdadeiro desfecho. O que é inegável é que sua morte precoce também lhe marcou um lugar especial na história da música.