Trabalhar na polícia é um desafio que exige um conjunto de competências cada vez mais raras em contextos urbanos, especialmente nas complexas metrópoles latino-americanas. Ser policial vai muito além de lidar com situações de risco e de tensão extrema; requer equilíbrio entre sensibilidade e firmeza, além de habilidade para se impor e, ao mesmo tempo, escutar. Contudo, essas demandas psicológicas têm um custo elevado. A relação intrínseca entre a profissão e o surgimento de transtornos psiquiátricos é alarmante, resultando frequentemente no afastamento de profissionais que, um dia, enxergaram nessa carreira não apenas uma oportunidade de ascensão social, mas um caminho para exercer cidadania e lutar por justiça. Porém, à medida que os desafios diários expõem os limites da vocação, muitos acabam divididos entre dois destinos: resignar-se às limitações do sistema jurídico, carregando o peso da frustração, ou sucumbir à tentação de agir fora das normas, assumindo um papel de justiceiro com todas as consequências que isso implica.
Mesmo afastada da polícia, o peso dessa vida ainda persegue Manuela Pelari, ou Pipa, interpretada por Luisana Lopilato em “Retorno” (2022). Este longa, que encerra a trilogia “Os Crimes do Sul”, sucedendo os filmes “Perdida” (2018) e “Presságio” (2020), é inspirado nas obras da escritora argentina Florencia Etcheves: “A Virgem em seus Olhos” (2012), “A Filha do Campeão” (2014) e “Cornelia” (2016). Sob a direção de Alejandro Montiel, o filme mantém uma fidelidade louvável ao texto de Etcheves — que também contribuiu para o roteiro ao lado de Montiel e da produtora Mili Roque Pitt —, ao passo que surpreende o espectador com novos elementos.
Neste capítulo final, encontramos Pipa em um ambiente completamente diferente. Após uma aposentadoria precoce e forçada, ela busca refúgio em Humahuaca, uma localidade bucólica situada na província de Jujuy, a 1.500 km de Buenos Aires. Vivendo com sua tia Alicia (Paulina García) e o filho Tobías (Benjamín del Cerro), Pipa tenta recomeçar, longe do caos e das cicatrizes de sua antiga vida. Alicia, uma figura maternal e protetora, simboliza o apoio emocional necessário para essa reconstrução. Inicialmente, o isolamento parece benéfico, trazendo uma serenidade antes inimaginável. Porém, a tranquilidade não dura: o passado, inevitavelmente, retorna para cobrar suas dívidas.
O gatilho para essa reviravolta é o assassinato de uma jovem garçonete indígena durante uma festa promovida por Etelvina Carreras (Inés Estévez), a figura mais poderosa da região. Esse crime expõe uma teia de abusos e desigualdades: misoginia, corrupção policial e política, além da exploração desenfreada dos recursos minerais locais pelas multinacionais, em conluio com a elite de Humahuaca. Entre os mais prejudicados estão os kolla, comunidade indígena pré-colombiana que resiste bravamente aos abusos das forças de segurança e dos capangas da personagem de Estévez. Confrontada por essas injustiças, Pipa sente-se compelida a retomar seu papel de combatente, mesmo sabendo que isso a levará, mais uma vez, a enfrentar escolhas dolorosas. A narrativa culmina com um retorno ao conflito, agora ainda mais marcado pela frustração e pelas consequências de seus atos, que afetam inclusive aqueles que apenas desejavam protegê-la.
A cinematografia de Guillermo Bill Nieto é um destaque à parte. Ele usa magistralmente os tons pastéis e frios dos ambientes internos para contrastar com o sol abrasador do vale de Humahuaca, refletindo o desalinhamento da protagonista com o cenário em que se encontra. Esse contraste visual não é apenas estético; é simbólico, revelando a essência de Pipa: uma mulher desajustada em sua busca por justiça e, ao mesmo tempo, uma idealista que luta contra as adversidades, mesmo sabendo que o preço será alto.
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