Sob a direção de Sebastian Lelio, “O Milagre” transcende a esfera do entretenimento ao se posicionar como uma análise profunda sobre crença, ciência e a natureza humana. Lançado em 2022, o filme é uma adaptação do romance homônimo de Emma Donoghue, autora de “O Quarto de Jack”, e ambientado na Irlanda de 1862, conduzindo o espectador a um vilarejo envolto em mistério e controvérsia.
A narrativa acompanha Elizabeth Wright (Florence Pugh), uma enfermeira convocada para investigar o estado de Anna, uma menina de 11 anos que, supostamente, sobrevive sem alimentos há quatro meses. Enraizado em uma comunidade rural onde o evento é visto por muitos como um milagre e por outros como uma possível fraude, o filme explora a tensão entre fé e razão. Elizabeth, movida por uma abordagem científica e cética, impõe uma série de regras rigorosas à família de Anna para assegurar a imparcialidade da investigação.
À medida que a relação entre Elizabeth e Anna evolui, o enigma inicial transforma-se em um estudo da condição humana. Elizabeth, assombrada por traumas pessoais, passa a questionar a rigidez de suas convicções diante do estado debilitado da menina. O dilema moral cresce à medida que a ciência entra em choque com as crenças arraigadas da comunidade, trazendo à tona questões complexas sobre o papel da fé em tempos de desespero.
Visualmente, “O Milagre” apresenta uma cinematografia magistral, onde tons verdes e texturas realçam a dualidade entre a serenidade e a hostilidade do ambiente irlandês. Lelio ainda rompe a quarta parede em momentos estratégicos, revelando o aparato de filmagem para sugerir que, assim como Elizabeth busca a verdade, nós também devemos questionar as narrativas que nos são apresentadas. Essa escolha metalinguística não é apenas estética, mas provoca uma reflexão sobre a confiança cega naquilo que consumimos como verdade, algo especialmente relevante em uma era saturada por desinformação.
O filme também lança um olhar crítico sobre a contemporaneidade, abordando a disseminação de falsas narrativas e o impacto da internet na percepção coletiva. A trama sugere que, assim como em 1862, hoje também enfrentamos uma crise de credibilidade, em que a verdade se torna maleável diante das crenças e das emoções. A fé cega, seja em milagres ou em notícias duvidosas, é desafiada a partir de um ponto de vista racional, sem desmerecer o papel das crenças, mas destacando a importância do pensamento crítico.
Disponível na Netflix, “O Milagre” não apenas entretém, mas provoca, desafiando o espectador a refletir sobre suas próprias crenças. Mais do que uma história de mistério, é um convite a explorar as camadas da experiência humana e a necessidade constante de equilíbrio entre fé e razão.
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