Poesia em cena: drama italiano premiado em Cannes e com 91% de aprovação da crítica especializada no Rotten Tomatoes, na Netflix Divulgação / Netflix

Poesia em cena: drama italiano premiado em Cannes e com 91% de aprovação da crítica especializada no Rotten Tomatoes, na Netflix

 Subverter expectativas é a essência da arte, e o cinema, como manifestação artística, cumpre esse papel ao desafiar convenções e iluminar questões humanas profundas. Alice Rohrwacher, diretora italiana aclamada, exemplifica essa abordagem em “Lazzaro Felice” (2018), uma narrativa complexa que desafia as fronteiras entre o rural e o urbano, o passado e o presente, a inocência e a corrupção. Sua obra não é apenas um exercício estético, mas uma investigação sobre a natureza humana, onde o realismo se entrelaça com o fantástico para denunciar uma sociedade injusta.    

O filme começa em um ambiente rural quase intocado, onde a beleza visual contrasta com a exploração brutal. Camponeses, vestidos em trapos marcados pelo suor e pela poeira, cultivam tabaco em condições análogas à escravidão. Cada centavo ganho é descontado de suas dívidas, e a ameaça constante de lobos simboliza não apenas perigos físicos, mas também a opressão invisível que paira sobre eles. Lazzaro, interpretado por Adriano Tardiolo, é o coração desse cenário sombrio. Sua bondade serena e inabalável destaca-se em um ambiente dominado pela ganância e pela tirania.  

Nicoletta Braschi dá vida à marquesa Alfonsina de Luna, uma figura manipuladora que mantém seus trabalhadores presos em uma ilusão de comunidade. Sua presença evoca o poder absoluto das elites, mascarado por promessas vazias. Lazzaro, com sua pureza desarmante, torna-se um mártir nesse contexto, refletindo a inércia diante da opressão e a passividade que muitas vezes caracteriza os explorados.  

Tancredi, o filho rebelde da marquesa, vivido por Luca Chikovani, encontra em Lazzaro uma lealdade incondicional que transcende as expectativas. A relação entre ambos ultrapassa interpretações convencionais, sugerindo um laço de companheirismo moldado pela adversidade. Tancredi usa a inocência de Lazzaro como instrumento para subverter a ordem, mas o destino de ambos é marcado por uma traição que define a essência do filme: a exploração dos vulneráveis.  

A narrativa sofre uma reviravolta quando Lazzaro, como o Lázaro bíblico, ressurge em uma sociedade diferente, porém igualmente cruel. O campo é trocado pela cidade, mas a servidão persiste em uma nova forma: a miséria urbana. Os antigos camponeses agora vagam como mendigos, simbolizando uma classe trabalhadora desamparada, presa em um ciclo de pobreza sem saída. Lazzaro, mesmo deslocado, mantém sua essência imaculada, enquanto a cidade é retratada em tons sombrios pela fotografia de Hélène Louvart, reforçando a degradação social.  

Rohrwacher constrói uma crítica incisiva ao capitalismo contemporâneo, expondo suas falhas por meio dessa transição entre o rural e o urbano. A dicotomia visual entre a natureza vibrante do campo e a frieza cinzenta da cidade acentua a perda de humanidade imposta pela modernidade. A diretora não apenas relata, mas provoca reflexão, usando o lirismo para suavizar sua denúncia contundente.   

Com claras referências ao neorrealismo italiano e ecos de mestres como Fellini e Truffaut, “Lazzaro Felice” se posiciona como uma das maiores produções da última década. É um filme que transcende o entretenimento, oferecendo um presente ao espectador: a oportunidade de repensar estruturas sociais, enquanto aprecia uma narrativa que, embora situada no presente, ecoa como um lamento eterno da humanidade por justiça e compaixão. O legado de Rohrwacher é, sem dúvida, uma contribuição indispensável para o cinema contemporâneo, enriquecendo-o com profundidade, beleza e relevância.

Filme: Lazzaro Felice
Diretor: Alice Rohrwacher
Ano: 2018
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★