Raros são os momentos no cinema em que a miséria e as desigualdades sociais são retratadas com a mesma intensidade e engenhosidade vistas em “Parasita”. A obra do sul-coreano Bong Joon-ho não se limita a exibir os horrores que o dinheiro — ou sua ausência esmagadora — impõe aos indivíduos e à sociedade. Ao contrário, o filme se desdobra em camadas profundas de reflexão, desafiando rótulos e escapando de qualquer classificação simplista. À primeira vista, “Parasita” pode parecer uma comédia de costumes com nuances de suspense. No entanto, não é preciso mais que alguns minutos para perceber que a narrativa esconde um vasto território de significados, coberto por uma linguagem visual refinada e uma história que pulsa com a realidade crua.
Bong Joon-ho, com sua habilidade incomparável de confrontar verdades desconfortáveis, tornou-se um mestre em usar o cinema como espelho das tensões sociais contemporâneas. Sua vitória no Oscar de Melhor Filme por “Parasita” marcou história, sendo o primeiro longa-metragem em idioma estrangeiro a conquistar tal honraria. O feito é ainda mais impressionante ao lembrarmos que o filme também levou a Palma de Ouro em Cannes, algo que não acontecia desde “Marty” (1955), de Delbert Mann. Além disso, “Parasita” arrebatou a estatueta de Melhor Filme Internacional, um reconhecimento que parecia previsível, mas ainda assim significativo.
O percurso de Bong Joon-ho até este marco foi cuidadosamente pavimentado por obras de forte viés sociológico, como “Expresso do Amanhã” (2013) e “Okja” (2017). Contudo, em “Parasita”, o diretor e seu co-roteirista, Han Jin-won, demonstram uma maturidade quase profética. O intervalo de seis anos desde “Okja” não apenas consolidou sua técnica, mas também intensificou sua visão crítica sobre as desigualdades estruturais. No centro da narrativa está a família de Kim Ki-woo, que sobrevive dobrando caixas de pizza e aproveitando o Wi-Fi de uma cafeteria vizinha — não por economia, mas por pura necessidade. Incapazes de acessar o tão desejado mundo do consumo, veem em uma oportunidade inesperada a possibilidade de mudar suas vidas. Quando Ki-woo é recomendado por um amigo para dar aulas de inglês a uma jovem de classe alta, o jogo começa a se desenrolar. Essa chance não apenas traz esperança, mas revela a engenhosidade do clã em explorar ao máximo as brechas de um sistema que os marginaliza.
Choi Woo-sik, no papel de Ki-woo, entrega uma atuação magnética, sustentada pelas viradas surpreendentes do roteiro de Bong e Han. O texto, que parece simples em sua essência, carrega simbolismos complexos, como o labirinto subterrâneo da mansão onde boa parte da trama se desenrola — uma metáfora que dá sentido ao título do filme. À medida que a narrativa avança, “Parasita” transforma-se. O que começa como uma história despretensiosa sobre uma família de vigaristas evolui para um retrato sombrio de como os mais ricos sugam a vitalidade dos pobres, oferecendo em troca apenas migalhas. No entanto, Bong vai além: ele não entrega respostas fáceis. Pelo contrário, o filme questiona as dinâmicas de exploração de maneira provocativa, deixando no ar a dúvida sobre quem realmente é o parasita nesta relação intrincada.
A genialidade de “Parasita” não está apenas em seu impacto visual ou nas reviravoltas meticulosamente planejadas, mas na forma como desnuda as contradições de nossa sociedade. É uma obra que permanece com o espectador muito depois do término, pedindo reflexão sobre os abismos entre as classes e o custo humano da desigualdade. Bong Joon-ho não apenas dirigiu um filme; ele entregou uma obra-prima que desafia, inspira e, acima de tudo, incomoda — como todo grande cinema deveria fazer.
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