Violências inomináveis ganham forma em um gigantesco lagarto em “Godzilla Minus One”, um tributo digno às sete décadas do monstro mais icônico da história do cinema. Desde sua estreia sob a direção de Ishirō Honda em 1954, a franquia mantém sua força com uma criatura que personifica impiedosamente as mazelas humanas, abandonando as profundezas do Pacífico para transformar o Japão em cenário de devastação, agora às vésperas do término da Segunda Guerra Mundial.
A narrativa conduzida por Takashi Yamazaki, que também assina o roteiro ao lado de Takeo Murata, aprofunda-se à medida que o colossal Godzilla avança, impondo o caos e desorientando as autoridades japonesas. É nesse cenário de desespero que surge um improvável protagonista, confrontando o ciclo de destruição com a força de sua determinação. Embora a produção revisite elementos consagrados nas 37 obras anteriores, ela se coloca como um elo entre o passado da franquia e sua futura expansão, preparando terreno para “Godzilla e Kong: O Novo Império” (2024), dirigido por Adam Wingard, onde o monstro encontrará um aliado igualmente assustador em uma inesperada jornada de quase redenção.
O epicentro humano dessa história é Koichi Shikishima, um alferes marcado pelo retorno ileso de sua missão como kamikaze. Em meio à aniquilação causada pelo Big G, ele falha em se consolidar como o salvador esperado por uma nação em ruínas. Após um ano de destruição, em 1946, no cenário desolador de um Japão em escombros, Shikishima é confrontado por uma mulher que não apenas denuncia sua covardia, mas também revela sua complexidade moral. Entre o peso de suas aspirações patrióticas e a busca por autopreservação, emerge um personagem dilacerado, cuja hesitação reflete o turbilhão interno de uma terra dividida entre memória e reconstrução.
Nesse momento, Yamazaki conduz a narrativa para territórios mais densos, abordando o ultranacionalismo e a xenofobia com uma sutileza cortante. Ryunosuke Kamiki entrega uma performance que encapsula o tormento interior de Shikishima, um homem despojado de qualquer âncora emocional ou social, assombrado pela culpa e pelo senso de responsabilidade sobre a devastação que assolou seu povo. Ele acredita encontrar redenção ao se devotar a ajudar os sobreviventes, uma tentativa de mitigar a sombra do passado que o persegue.
A profundidade do enredo é enriquecida por personagens como Kenji Noda, um engenheiro de armas interpretado por Hidetaka Yoshioka, e Sosaku Tachibana, um ex-mecânico da Marinha vivido por Munetaka Aoki. Apesar de sua ênfase em protagonistas masculinos, a história encontra equilíbrio ao introduzir Noriko Oishi, interpretada por Minami Hamabe, e sua filha adotiva Akiko, vivida por Sae Nagatani, que injetam altruísmo e ternura no universo dominado pela dureza de Shikishima e seus companheiros. E, embora Godzilla permaneça como um grandioso coadjuvante, sua presença — paradoxalmente secundária — é magistralmente articulada, reforçando seu papel como símbolo das forças indomáveis que transcendem o controle humano.
Ao explorar os dilemas de seus personagens e os ecos das catástrofes humanas, “Godzilla Minus One” emerge como uma obra que vai além do entretenimento, penetrando em questões profundas e ressonantes. Aqui, a monstruosidade é apenas uma lente — sombria, mas indispensável — para examinar a fragilidade, o arrependimento e a luta por reconstrução, tanto de um país quanto de seus indivíduos.
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