Aplaudido nos cinemas e esquecido no streaming, o filme digno de Oscar que a Netflix preferiu esconder Divulgação / Universal Pictures

Aplaudido nos cinemas e esquecido no streaming, o filme digno de Oscar que a Netflix preferiu esconder

Ao longo da história, o ser humano buscou incessantemente moldar sua inclusão no mundo, criando códigos e normas que regem a convivência e protegem a sociedade de seus próprios excessos. Nesse contexto, os contos de fadas emergem como alertas simbólicos das consequências de violar tais estatutos. O filme “A Bruxa” (2015), dirigido por Robert Eggers, utiliza o desejo ancestral de emancipação feminina como pano de fundo para narrar a fragmentação de uma família puritana no século XVII. Essa desagregação, nascida do confronto entre aspirações pessoais e dogmas religiosos, lança luz sobre as tensões entre liberdade e opressão.

O longa é permeado por sermões que evocam as lições dos contos de fadas pagãos, sublinhando a necessidade de conformidade para afastar os castigos eternos. Eggers entrelaça esses discursos com reflexões extraídas do livro de Jó, criando um paralelo entre os dilemas humanos e os desafios espirituais narrados na Bíblia. Contudo, “A Bruxa” não se propõe a pregar moralidade; ao contrário, desarma o espectador, convidando-o a reconhecer nos personagens suas próprias falhas e imperfeições. A obra revela a essência contraditória da humanidade: pecadora, vulnerável e, muitas vezes, perversa.

O roteiro não se limita a uma leitura unidimensional. Religião, política e filosofia são misturados em um caldeirão narrativo que desafia o espectador a decifrar quem, afinal, conduz os fios dessa narrativa grandiosa. Em meio a essa complexidade, destaca-se Katherine (Kate Dickie), a matriarca enlutada, ciente de seu papel na pequena comunidade familiar que forma com o marido William (Ralph Ineson) e seus filhos. William, interpretado com maestria por Ineson, carrega o peso de sua formação teatral para o cinema, ampliando a densidade emocional do personagem. Os filhos — os gêmeos Jonas e Mercy, Caleb (Harvey Scrimshaw), o bebê Samuel e Thomasin (Anya Taylor-Joy) — completam a dinâmica familiar, sendo Thomasin a peça central que movimenta a trama. Após serem expulsos de uma comunidade religiosa por discordâncias doutrinárias, a família passa a viver isolada nas bordas de uma floresta, onde a solidão expõe suas fragilidades.

É neste ambiente opressor que Thomasin floresce como personagem principal. Interpretada por Anya Taylor-Joy, sua figura inocente e angelical torna-se o centro de uma tensão que explora as ambiguidades do pecado e da pureza. Sua transição de menina para mulher ocorre sob o olhar desconfiado e repressivo de seus familiares, simbolizando a tragédia de ser mulher em uma sociedade rígida e patriarcal. À medida que sua força de trabalho é mais exigida, sua presença é vista como um fardo e, ao mesmo tempo, como uma ameaça. A impossibilidade de encaminhá-la ao casamento — algo esperado para as jovens da época — transforma-a em um alvo de angústias e ressentimentos familiares. Nesse cenário, Eggers habilmente insere discussões sobre abuso, repressão sexual e a violência inerente às estruturas domésticas autocráticas.

O sobrenatural adquire protagonismo com o desaparecimento do bebê Samuel, após uma brincadeira inocente de Thomasin. O evento desata suspeitas e revela que forças malignas espreitam na floresta. Uma bruxa, habitante ancestral daquele bosque, enxerga a família como invasora, intensificando a atmosfera de paranoia. Isolados e consumidos pela tensão, os membros da família se tornam presas fáceis para influências maléficas. O bode negro Black Philip, símbolo clássico de satanismo, é gradualmente revelado como a personificação do mal, envolvendo Thomasin em um desfecho perturbador que une elementos místicos e psicológicos.

Mais do que uma história sobre uma família em ruínas, “A Bruxa” é uma alegoria sobre as limitações impostas às mulheres em uma sociedade misógina e repressiva. A cena emblemática em que Thomasin dialoga com Black Philip encapsula a luta por identidade em um mundo onde a liberdade feminina é constantemente cerceada. Eggers constrói uma narrativa que reflete a dualidade entre o desejo de emancipação e os custos dessa aspiração.

Ao fim, o filme entrega um retrato desolador, mas visualmente arrebatador, da condição feminina. Inspirado na estética de Johannes Vermeer, “A Bruxa” une beleza e brutalidade para abordar temas como a autodestruição familiar e a opressão patriarcal. A obra transcende o gênero terror para se tornar um estudo profundo sobre o papel da mulher — uma jornada que, tristemente, ainda permanece inacabada. Assim, “A Bruxa” não apenas provoca, mas também emociona, confrontando o espectador com a persistência de questões universais.

Filme: A Bruxa
Diretor: Robert Eggers
Ano: 2015
Gênero: Mistério/Terror
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★