Drama doloroso e real que fez o público do Festival de Toronto chorar e aplaudir por 10 minutos, está na Netflix Divulgação / Netflix

Drama doloroso e real que fez o público do Festival de Toronto chorar e aplaudir por 10 minutos, está na Netflix

Angelina Jolie, internacionalmente reconhecida por sua trajetória como atriz, construiu, com igual dedicação, uma carreira como diretora. Em “First They Killed My Father” (2017), seu quinto longa-metragem, Jolie se distancia dos holofotes tradicionais para se aventurar em um território de profunda densidade emocional e histórica. Baseado no livro homônimo da autora cambojana Loung Ung, o filme retrata os horrores vividos pelo povo cambojano sob o regime do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot entre 1975 e 1979. Coautora do roteiro, Ung narra sua experiência pessoal durante um dos capítulos mais sombrios da história contemporânea, trazendo à tona memórias dolorosas, mas necessárias, para um mundo que frequentemente prefere esquecer o passado.

A perspectiva da pequena Loung, que tinha apenas cinco anos quando Phnom Penh caiu sob o domínio do Khmer Vermelho, é o fio condutor desta narrativa. A escolha de contar a história pelos olhos de uma criança não suaviza a brutalidade, mas a torna ainda mais palpável e angustiante. Jolie evita o romantismo e mantém o rigor histórico, conduzindo o espectador por um labirinto emocional onde cada detalhe — desde a expressão de medo nos rostos até o silêncio opressor dos campos de reeducação — é tratado com um cuidado quase cirúrgico.

A relação de Jolie com o Camboja não é apenas profissional. Foi durante as filmagens de “Lara Croft: Tomb Raider” (2001) que a atriz conheceu o país pela primeira vez e adotou seu filho primogênito, Maddox, nascido em solo cambojano. Essa conexão emocional certamente impregna o filme de um significado mais profundo, tornando-o uma obra pessoal tanto quanto política. A própria experiência de Jolie com questões familiares complicadas, como seu conturbado relacionamento com o pai, Jon Voight, talvez tenha intensificado sua identificação com a história de Loung Ung, marcada pela perda e pela saudade de figuras paternas.

O filme mergulha na rotina das chamadas “unidades de reeducação”, termo eufemístico para campos de trabalhos forçados, onde a natureza exuberante contrastava dolorosamente com a miséria humana. A cinematografia de Anthony Dod Mantle destaca esse contraste, pintando paisagens paradisíacas enquanto as cores se desvanecem nos semblantes exaustos dos prisioneiros. Essa escolha estética reforça o paradoxo: a beleza natural e a desolação humana coexistindo de maneira brutal.

A performance da jovem atriz Sareum Srey Moch, interpretando Loung, é fundamental para transmitir a autenticidade da narrativa. Sua expressão de vulnerabilidade e resistência ecoa a luta de uma geração inteira, vítima de um regime totalitário que destruiu vidas sob o pretexto de uma revolução. Desde o treinamento forçado para manusear armas até a constante ameaça de morte, cada momento vivido pelas crianças cambojanas é um testemunho da perda precoce da inocência.

“First They Killed My Father” não se limita a contar uma história pessoal, mas posiciona a tragédia cambojana dentro de um panorama global. A retirada das tropas americanas do Sudeste Asiático, após o término da Guerra do Vietnã, criou um vácuo de poder que rapidamente foi preenchido por forças autoritárias. A omissão dos Estados Unidos, justificando sua ausência sob argumentos financeiros e morais, contribuiu para o genocídio cambojano, que vitimou cerca de 25% da população, entre 240 mil e 300 mil civis.

A alusão ao bombardeio americano e ao desinteresse pelas consequências no Camboja não passa despercebida. Jolie não apenas narra a tragédia, mas também aponta responsabilidades, desafiando a narrativa oficial que historicamente absolve as potências ocidentais de sua parcela de culpa. O filme se torna, assim, uma acusação silenciosa, mas contundente, contra as forças externas que contribuíram para o caos no país.

Apesar de ser uma obra focada no sofrimento coletivo, o filme também explora a resiliência individual e familiar. Os flashbacks, habilmente inseridos por Jolie, oferecem momentos de respiro ao público, lembrando que, antes da devastação, havia uma vida repleta de pequenas felicidades. Essa alternância entre passado e presente mantém o espectador preso à tela, torcendo pela sobrevivência da família Ung e se perguntando se haverá espaço para a esperança em meio ao desespero.

A transição da narrativa para uma luta pela sobrevivência transforma o filme em um drama humano, onde a guerra se torna um cenário secundário. O pragmatismo adotado pelos personagens — desde comer besouros para sobreviver até a necessidade de abandonar qualquer ilusão de normalidade — ilustra a brutalidade do cotidiano sob o regime de Pol Pot. Jolie evita sentimentalismos, preferindo uma abordagem crua que ressalta a resiliência diante da adversidade.

Embora  “First They Killed My Father” possa ser comparado a clássicos como “Apocalypse Now” (1979) e “Sete Anos no Tibete” (1997), Jolie consegue evitar clichês típicos do gênero, trazendo uma autenticidade que diferencia sua narrativa. Sua coragem ao abordar um tema tão delicado e politicamente controverso sem cair em maniqueísmos ou simplificações é louvável.

Com a mesma precisão técnica e sensibilidade demonstradas em “Invencível” (2014), Jolie prova que está trilhando um caminho sólido na direção. Seu compromisso em retratar histórias complexas, sem perder de vista a humanidade dos personagens, torna “First They Killed My Father” uma obra essencial, tanto para a memória histórica quanto para o cinema contemporâneo.

Com “First They Killed My Father”, Angelina Jolie reafirma sua posição como uma diretora de coragem e sensibilidade, desafiando convenções e oferecendo uma perspectiva única sobre a guerra. A profundidade emocional e o rigor histórico presentes na obra garantem não apenas sua relevância, mas também seu lugar de destaque na filmografia internacional, provando que Jolie não é apenas uma estrela de Hollywood, mas uma cineasta comprometida em dar voz às histórias que precisam ser ouvidas.

Filme: First They Killed My Father
Diretor: Angelina Jolie
Ano: 2017
Gênero: Drama/Guerra
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★