Ninguém está imune à escravidão das próprias memórias, especialmente quando tudo que resta é uma felicidade há muito extinta. Ao longo da vida, somos constantemente ameaçados pelo risco de nos tornarmos arqueólogos de nossas próprias histórias, vasculhando vestígios de momentos passados na esperança de que uma época sepultada possa, por si só, ressuscitar. É exatamente essa angústia que permeia “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, a mais recente criação de Alejandro González Iñárritu, que transforma o cinema em uma arena para exorcizar fantasmas pessoais e coletivos.
Iñárritu, conhecido por sua ousadia em explorar as dores humanas e as contradições sociais, não recua diante da brutalidade das verdades que deseja expor. Neste filme, ele transcende a narrativa convencional para revelar as fissuras das Américas — um continente marcado pela opulência, mas também pela violência e pelo desajuste do ser. É um grito contra o cinismo que sustenta as sociedades modernas, um manifesto contra as mensagens tóxicas e palavras que se tornam armas.
Com cinco Oscars no currículo, o diretor mexicano, apelidado de “El Negro”, traz à tela uma obra que, mais uma vez, pode encantar a Academia, dada sua combinação de originalidade e complexidade estética. “Bardo” é mais do que uma narrativa visual; é um mergulho no caos existencial de uma era, uma tentativa de arrancar a máscara da ignorância que domina o presente. Em seu 13º filme, Iñárritu reforça sua inquietação diante do estado atual do mundo, utilizando a linguagem cinematográfica para desnudar os aspectos mais sombrios e urgentes da contemporaneidade.
A obra carrega ecos de seus trabalhos anteriores: o lirismo sombrio de “Biutiful” (2010), a crítica mordaz ao vazio existencial de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (2014) e as ousadas experimentações visuais de “O Regresso” (2015). Aqui, ele não apenas revisita essas temáticas, mas as amplia, utilizando metáforas potentes para abordar a experiência chicana além das fronteiras do Rio Grande. Entretanto, “Bardo” é também profundamente pessoal. Silverio Gacho, o protagonista, interpretado com excelência por Daniel Giménez Cacho, funciona como o alter ego de Iñárritu. Ao construir essa figura, o diretor não apenas se reafirma, mas também expõe suas próprias inquietações e as penas que carrega.
Este filme é uma recusa veemente ao escapismo nostálgico, uma negação do sonho de retorno a tempos idílicos. Silverio não é um herói, mas um sobrevivente de suas próprias lutas internas e das mazelas de um mundo desmoronado. Iñárritu transforma a dor em um ato pedagógico, desafiando o espectador a confrontar a feiura do mundo e encontrar, paradoxalmente, coragem e renovação. No final, “Bardo” é um exercício de resistência, uma obra que desafia as convenções e reafirma o poder do cinema como veículo de transformação profunda e necessária.
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