Esqueça o humor fácil, comédia inteligente na Netflix é perfeita para mentes questionadoras Everett White / Netflix

Esqueça o humor fácil, comédia inteligente na Netflix é perfeita para mentes questionadoras

Uma obra não sobrevive cinco décadas sem razão. “The Boys in The Band”, dirigido por Joe Mantello, não apenas ecoa como um testemunho das lutas de uma geração, mas também como um reflexo das complexas camadas que permeiam as relações humanas, sobretudo quando o preconceito é um terceiro protagonista indesejado. Com um elenco inteiramente composto por atores assumidamente gays, o filme transcende a mera representação, tornando-se uma declaração em si. No contexto em que ser gay não era apenas uma resistência, mas uma afronta, a produção de Mantello é mais que um filme: é um grito de sobrevivência e um espelho das adversidades que marcaram uma época de silenciamento, exclusão e violência.

A origem do enredo remonta ao teatro, tendo sua estreia na Broadway em 1968, com texto assinado por Mart Crowley. A adaptação cinematográfica de 1970, sob a direção de William Friedkin, foi um marco inicial, mas foi a versão de 2018 que trouxe à tona uma leitura renovada, celebrando 50 anos da obra. Mantello, ciente da importância histórica do material, não se limitou a um mero remake, mas trouxe uma abordagem que respeita suas raízes teatrais ao mesmo tempo que dialoga com os novos tempos, resultando em um drama cru e envolvente.

Ambientado em 1968, um ano antes da emblemática rebelião de Stonewall, o filme se passa em um mundo onde amar alguém do mesmo sexo não era apenas condenável, mas quase inimaginável para a maioria. A sociedade, que insistia em uma visão limitada de amor, restringia suas noções à união heterossexual, muitas vezes vinculada ao matrimônio e à procriação. Mesmo com a presença evidente de homossexuais no cotidiano, o preconceito e o silêncio se impunham como leis não escritas. O pano de fundo dessa trama é um período de embates silenciosos, onde ser diferente era um risco constante. Eventos como a invasão ao bar Stonewall seriam a fagulha necessária para transformar uma comunidade marginalizada em uma força política e social, afirmando a existência e o direito de amar livremente.

No entanto, mesmo entre aqueles que deveriam ser aliados, havia tensões internas que dilaceravam qualquer sensação de união. O filme não esconde essa realidade. Pelo contrário, expõe as feridas abertas de uma comunidade que, apesar de enfrentar inimigos externos, ainda lida com seus próprios demônios internos. O orgulho de ser diferente, embora vital, não era suficiente para apagar as divisões dentro do próprio grupo.

A narrativa gira em torno de uma festa oferecida por Michael em homenagem a Harold, interpretado magistralmente por Zachary Quinto. O evento, longe de ser uma simples celebração, se transforma em um campo minado emocional. Jim Parsons, como Michael, assume o papel de catalisador, disparando provocações carregadas de mágoa e ressentimento. Sua renúncia ao álcool, vista como um exercício de autocontrole, na verdade esconde uma autopunição enraizada em sua formação católica e sua luta interna com sua sexualidade.

Matt Bomer traz à vida Donald, um personagem que representa o ideal do gay tolerado socialmente: bonito, discreto e altruísta, mas constantemente desvalorizado e suspeito de dissimulação. Sua aparente serenidade contrasta com o caos emocional que permeia a festa. Aos poucos, os demais convidados chegam, cada um representando uma faceta distinta da comunidade gay: Emory, o latino efeminado; Bernard, o negro apaixonado por música; Hank e Larry, um casal enfrentando suas próprias contradições; e o jovem prostituto contratado para a festa, símbolo da objetificação presente até mesmo entre eles.

O cenário se complica ainda mais com a presença de Alan, um ex-amigo de Michael que vive uma existência heterossexual forçada. Interpretado por Brian Hutchison, Alan é o contraponto perfeito, trazendo um conflito que não se restringe apenas à orientação sexual, mas ao próprio conceito de identidade.

A proposta aparentemente inocente de um jogo vira um estopim para revelações dolorosas. Entre piadas sobre envelhecimento, drogas e solidão, as máscaras caem, expondo o quão frágil é a conexão entre esses homens. Mantello maneja o texto de Crowley com maestria, transformando diálogos em armas cortantes, onde cada palavra carrega o peso de anos de repressão.

A adaptação de Mantello mantém o tom politicamente incorreto, mas de forma intencional, desafiando o espectador a confrontar suas próprias percepções e preconceitos. O que poderia ser apenas uma peça datada se torna uma análise atemporal da intolerância, não apenas externa, mas também interna.

Décadas após sua estreia, “The Boys in The Band” permanece relevante, servindo como um lembrete do progresso alcançado e das batalhas ainda em curso. Com um tom provocador e uma narrativa que não faz concessões, o filme desafia não só a comunidade LGBTQ+, mas a sociedade como um todo, a refletir sobre as barreiras que ainda existem, muitas vezes invisíveis, mas igualmente opressivas. 

Ryan Murphy, com sua sensibilidade para temas LGBTQ+, reforça a importância de revisitar histórias como essa, mostrando que o passado, por mais doloroso, é fundamental para entender o presente. Sob a direção de Mantello, o filme não apenas resgata uma narrativa essencial, mas a eleva, criando um poderoso testemunho que continua a ressoar, décadas depois de sua criação.

Filme: The Boys in The Band
Diretor: Joe Mantello
Ano: 2020
Gênero: Comédia/Drama
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★