Desde o instante em que abrimos os olhos ao mundo, inicia-se uma caminhada repleta de incertezas, onde cada passo é guiado por crenças, valores e, para muitos, por uma fé em algo maior — uma presença transcendente frequentemente chamada de Deus. Essa entidade, cuja essência é associada à proteção e ao cuidado, representa para os fiéis um porto seguro, mesmo que a convicção em suas escolhas não seja constante. Afinal, o questionamento faz parte do percurso humano, especialmente em momentos de dificuldade, quando o espírito se encontra fragilizado e o ânimo vacila. Esses períodos de tribulação, por mais dolorosos que sejam, oferecem a oportunidade de uma profunda reflexão, onde o confronto entre razão e emoção pode revelar a necessidade de repensar crenças ou até mesmo redirecionar o curso da vida.
A adolescência, em particular, destaca-se como uma fase de extrema vulnerabilidade. É nesse período que o indivíduo, ainda em formação, encontra-se mais suscetível às influências externas — tanto positivas quanto negativas. As incertezas dessa etapa podem se transformar em desafios quase insuportáveis, especialmente quando combinadas com as rígidas normas de uma tradição religiosa que limita as experiências e interpreta o mundo de maneira restritiva. Para jovens que seguem doutrinas inflexíveis, a colisão com a realidade pode ser inevitável, como um choque contra um muro intransponível.
É esse conflito que serve como pano de fundo para “Rumspringa” (2022), dirigido pela alemã Mira Thiel. A narrativa acompanha a jornada de um jovem amish, pertencente a uma comunidade que rejeita o progresso tecnológico em favor de um estilo de vida austero, em sua busca por autoconhecimento e confronto com o desconhecido. O título refere-se ao rito de passagem amish, no qual jovens — em sua maioria homens — são incentivados a explorar o mundo fora de sua comunidade para decidir se desejam permanecer fiel aos preceitos religiosos ou abraçar um estilo de vida diferente. Esse período, que literalmente significa “correr por aí” em alemão arcaico, simboliza a ruptura temporária com as amarras da tradição, permitindo ao jovem vivenciar o proibido e refletir sobre suas escolhas.
Jacob, o protagonista, deixa sua aldeia na Pensilvânia, um estado norte-americano marcado pela defesa da liberdade religiosa desde o século XVII, para uma jornada em Berlim, Alemanha. Seu objetivo é encontrar parentes distantes, incluindo um tio menonita, ramo religioso que compartilha raízes com os amish, mas adota uma visão menos rigorosa. Interpretado de forma cativante por Jonas Holdenrieder, Jacob é um retrato da ingenuidade: sua desconexão com o mundo moderno é evidente desde sua chegada ao aeroporto, onde perde sua bagagem em um mal-entendido quase cômico. Ao se deparar com um cartão de uma loja vegana deixado pela mulher que inadvertidamente levou seus pertences, Jacob agarra-se a essa pista mínima como sua única esperança de recuperar suas coisas.
O roteiro, escrito em colaboração por Mira Thiel, Nika Heinrich e Oskar Minkler, equilibra humor e introspecção ao revelar as desventuras de Jacob em um ambiente completamente alheio à sua realidade. Desprovido de recursos financeiros e perdido nas ruas de Berlim, ele encontra Alf, um hipster com aparência que lembra os amish, mas cujos valores estão em nítido contraste com os de Jacob. Interpretado por Timur Bartels, Alf é um jovem urbano e hedonista, que se envolve relutantemente com o desajeitado forasteiro, acolhendo-o em seu apartamento e, sem querer, tornando-se seu guia em uma jornada de autodescoberta.
A convivência entre Jacob e Alf é marcada por tensões e aprendizagens mútuas, onde diferenças e semelhanças vêm à tona de maneira sutil. Enquanto Alf lida com questões familiares que o afastam de um senso de pertencimento, Jacob enfrenta a vigilância constante dos preceitos que moldaram sua existência. Essa dinâmica é enriquecida pelo envolvimento de Jacob com Ina, uma artista plástica vivida por Gizem Emre, cujo encontro acidental dá início a uma transformação gradual em sua perspectiva sobre liberdade, identidade e amor.
A direção de Thiel utiliza de forma inteligente elementos comuns às comédias românticas, como o contraste entre protagonistas de mundos opostos, mas vai além ao inserir camadas de reflexão sobre religião e filosofia. Embora algumas subtramas careçam de profundidade, o relacionamento entre Jacob e Alf, assim como os dilemas éticos que emergem de suas experiências, tornam a narrativa envolvente. A cena do reencontro de Jacob com seu tio é particularmente marcante, servindo como um catalisador para suas decisões finais. Nesse diálogo, as verdades que sustentaram sua formação são colocadas em contraste com a promessa de uma nova vida, convidando o protagonista a pesar cuidadosamente o que deixar para trás e o que levar consigo.
“Rumspringa” se destaca por abordar de maneira leve, mas perspicaz, a complexa transição entre tradição e modernidade, fé e autonomia. Mais do que uma comédia, é um convite a refletir sobre os desafios do amadurecimento em um mundo onde a liberdade é tão atraente quanto assustadora, e as escolhas podem determinar não apenas quem somos, mas quem desejamos ser.
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