2022: o golpe que tropeçou num delírio

2022: o golpe que tropeçou num delírio

O golpe civil-militar de 2022, planejado, segundo a Polícia Federal, por bolsonaristas, não deu certo porque se amparou substancialmente em um profundo descolamento da realidade por parte de seus agentes. Isso, de forma vexaminosa, inclui os generais Braga Netto e Augusto Heleno. Ao longo da República, as motivações golpistas foram as mais variadas: soldo, crença no poder regenerador das armas, “esprit de corps”, ambição pessoal etc. O caso presente acrescenta a essa lista o delírio como fator motivacional.

Delírio é um conceito da Psicologia. Não implica juízo de valor. Tratar conceitos psicológicos como “pejorativos” pode prejudicar a compreensão dos fatos, e mais que isso: pode representar uma negação da Psicologia, cujo vocabulário é insubstituível na explicação de determinados comportamentos. Uma das acepções psicológicas do termo “delírio”, encontradas no Dicionário Houaiss, diz que se trata de “convicção errônea mantida por uma pessoa, baseada em falsas conclusões tiradas dos dados da realidade exterior, e que não se altera diante de provas ou raciocínios em contrário”.

Diante dessa acepção, as teses centrais do golpismo — de que houve fraude nas eleições presidenciais de 2022, tanto quanto de que o comunismo ameaça o Brasil — claramente configuram delírio. Obviamente porque os golpistas “acreditavam” nas próprias sugestões, conforme demonstram fartamente os áudios, declarações e mensagens obtidos pela Polícia Federal. Assim, mais que enganar a terceiros, os golpistas entraram em um processo recorrente de autoengano.

A hipótese de delírio só poderia ser desmentida se ficasse provado que a Justiça Eleitoral, OAB, partidos políticos, Ministério Público, Polícia Federal, Conselho Brasileiro de Computação e até o Exército enganaram a sociedade brasileira ao sustentar que não há evidências de que o sistema eleitoral do país é sujeito a fraudes. Pode-se duvidar de tais entidades, claro. Mas, para reivindicar a razão, é preciso provar que estão erradas, e até hoje espera-se pela contraprova dos golpistas. Nada, além de “crença”, veio a público.

Acreditar em fraude eleitoral e no comunismo levou os golpistas a subestimar outra realidade: um golpe militar era inviável em 2022. É certo que eles contavam com o apoio insuflado dos chamados bolsonaristas radicais, que nunca excederam talvez 15% do eleitorado nacional. É pouco, ainda que a insatisfação dessas pessoas pudesse ter um componente legítimo quando bradavam contra a corrupção: todo cidadão deve se indignar com a corrupção. Isso não torna a fraude eleitoral e o comunismo reais na conjuntura política brasileira de 2022. Senão, vejamos.

O comunismo faria sentido se houvesse evidências de que algum governo tentou implantar no Brasil, neste século, a ditadura do proletariado, o partido único, a abolição da propriedade privada e a abolição do próprio Estado. O PT? O grande teórico português João Bernardo acharia essa associação ridícula. Ok, João Bernardo é marxista, mas o general Golbery do Couto e Silva nunca foi. E, para Golbery, o nascente Partido dos Trabalhadores não representaria ameaça comunista coisa nenhuma. De fato, o PT nunca utilizou ou defendeu golpe de Estado, método que o comunismo propõe para se chegar ao poder. Como tal, é um partido tão democrático como os dissidentes da social-democracia europeia.

Já no final dos anos 1970, Golbery acreditava que o líder desse partido “reformista”, Luiz Inácio Lula da Silva, deveria permanecer em liberdade porque Lula nunca foi revolucionário. Na visão do militar, o sindicalista do ABC era a única liderança popular capaz justamente de “atrapalhar” os planos da verdadeira ameaça comunista da época: o PCdoB. O inteligente Golbery precisava de Lula vivinho da Silva, e em plena atividade, para dividir a oposição ao regime militar durante a transição “lenta e gradual” para a Nova República, iniciada por Ernesto Geisel (1974-79). E assim nasceu o PT, em 1980: produto das lutas sociais — sindicalistas, estudantes e ala progressista da Igreja Católica — e de um xadrez político onde seria útil, na visão das classes dominantes.

1964 e agora

Diferente do que aconteceu em 2022, um golpe militar fazia sentido em março de 1964 — claro, segundo os conservadores. Porque o comunismo era uma realidade ideológica mundial, presente também no Brasil. A Revolução Cubana havia acabado de acontecer, em 1958, incendiando o continente latino-americano com ideias marxistas, às quais Washington se opunha sem dó nem piedade (basta lembrar as ingerências posteriores na República Dominicana, na Nicarágua e no Chile). Internamente, João Goulart sofria uma inédita pressão, à direita e à esquerda. E as esquerdas — movimento estudantil, PCB, PCdoB e Ligas Camponesas, além do próprio PTB, tão acusado de peleguismo — estiveram na iminência de levar a uma verdadeira ruptura institucional.

O que atiçava os quartéis e os conservadores em 1964 não era o processo eleitoral, e sim as chamadas Reformas de Base e o consequente risco de comunização do Brasil. Se o oscilante Jango virasse para valer à esquerda — como queriam Leonel Brizola e Francisco Julião —, no mínimo uma verdadeira reforma agrária estaria a caminho, bem como o fim da remessa de lucros do Brasil para o exterior, com estatizações e outras medidas “radicais”. Um horror para o empresariado local e interesses alienígenas associados.

Com efeito, o apoio da embaixada norte-americana ao golpe, já sob a presidência de John Kennedy, era concreto. Os golpistas tupiniquins podiam colocar os tanques nas ruas, sem o receio de serem abandonados. Leia-se, não tinham ao seu lado apenas manifestantes da classe média gritando nas ruas. Grandes empresários envolveram-se diretamente nas articulações, entre os quais Magalhães Pinto — dono do extinto Banco Nacional (e então governador de Minas Gerais). Organizaram-se grupos formadores de opinião articulados com a CIA — Instituto Brasileiro de Ação Democrática, IBAD, e Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, IPES — que fazem caricatura de “pensadores” delirantes como Allan dos Santos e Tércio Tomaz.

Por essas e outras razões, em 2022 a situação era muito mais adversa para o golpismo do que fora 1964. O oficialato olhava o quadro e avaliava: “Não existe ameaça comunista concreta ao Brasil nem, portanto, o apoio de Washington. O grande capital não se aliou ao golpe porque, por outro lado, nem o capitalismo nem a democracia estão em risco — aliás, a democracia recrudesceu! Está mais forte do que nunca, com eleições livres e as instituições funcionando regularmente. Lula está de volta ao poder, mas quem é Lula?” Veio à lembrança o ilustre e letrado general Golbery, cujo prognóstico mostrou-se verdadeiro.

Um dado ilustrativo: entre os nomes que figuraram nos dois primeiros governos do ex-metalúrgico destacou-se um liberal de cepa, Henrique Meirelles, nomeado para o posto-chave: o Banco Central. O cofre brasileiro foi entregue depois de José Dirceu ter participado de várias reuniões em Nova Iorque e com Washington, com a finalidade de “acalmar o mercado”. Em uma delas, na véspera das eleições de 2002, baixou de helicóptero na Faria Lima em companhia do banqueiro Mario Garnero, para tratativas com a embaixadora dos Estados Unidos, Donna Hrinak. Uma reportagem da Folha de São Paulo, de 25 de novembro de 2012, relembrou o fato:

“A cena deixou a embaixadora confusa, como ela registrou: É uma imagem muito diferente para um partido de ‘trabalhadores’.” A própria identidade do responsável pelo encontro a impressionou. “Mario Garnero é um dos principais líderes empresariais do Brasil e poderia parecer uma escolha estranha ser alguém capaz de intermediar encontros para o PT.”

Esse é o PT que os bolsonaristas e golpistas atuais chamam de “comunista”. Olhando para a conjuntura política saída das urnas, em 2022, militares lúcidos como o general Freire Gomes devem ter concluído: “se Lula já não representava perigo entre 1979 e 2010, muito menos agora, que está mais amarrado do que nunca a uma ampla coalizão com a direita. E sim: será ‘refém’ de um Congresso ultraconservador e sem chance de ruptura, dada sua personalidade e a ampla coalizão que o sustenta”. Conclusão: “não existem condições efetivas para um golpe de Estado porque, simplesmente, não existe no horizonte ameaça real contra… o ‘sistema’”.

É digno de nota que, ao contrário do que fizeram África do Sul, Argentina e Chile, o Brasil anistiou os golpistas de 1964, que ainda por cima ficaram fora da última reforma previdenciária: as Forças Armadas compõem a intocada casta do setor público, que inclui o poder judiciário. Por tudo isso, a possibilidade do general Freire Gomes de ordenar a prisão de Bolsonaro, se este assinasse a ordem para o golpe, é totalmente lógica. Claro, não pode ser descartado que os chefes do Exército e da Aeronáutica, Baptista Júnior, tenham agido em estrito respeito à Constituição e ao Estado Democrático de Direito. Com isso, honraram seu país e outro militar, o Marechal Henrique Teixeira Lott: em 1955, Lott também impediu um golpe contra o presidente eleito, Juscelino Kubitscheck.

Em tese, por fim, tanto a fraude eleitoral quanto o comunismo da Era Bolsonaro nunca passaram de delírio transformado numa grande fake news, criada por extremistas dentro do Palácio do Planalto (ou sob o consentimento da Presidência). Estertores de uma época amplamente considerada sombria no Brasil, é possível que o único êxito de Braga Netto, almirante Garnier e seus pares tenha sido desonrar as Forças Armadas. Não tinha mesmo como dar certo.

J.C. Guimarães

Crítico literário.