Misturar suspense, drama e pitadas estratégicas de humor em um único filme é uma tarefa desafiadora que poucos conseguem executar com maestria. Juan José Campanella, no entanto, não apenas aceita o desafio como entrega uma obra-prima. No Oscar de 2010, enquanto a categoria de Melhor Filme concentrava todas as atenções em uma disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow, foi na corrida pelo prêmio de Melhor Filme Internacional que um acontecimento surpreendente roubou os holofotes. O alemão “A Fita Branca”, de Michael Haneke, favorito indiscutível e já consagrado em Cannes, parecia imbatível. Porém, o argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, com uma divulgação mais discreta, conquistou o júri e levou a estatueta. Foi apenas a segunda vez que a Argentina alcançou tal feito, repetindo o marco de 25 anos antes, quando “A História Oficial”, de Luis Puenzo, brilhou na mesma categoria.
A narrativa de Campanella é construída sobre o conceito de tempo elástico, explorando as consequências de um crime que marcou profundamente a vida de Benjamín Esposito, oficial de justiça aposentado. A história, ambientada em dois períodos distintos, mostra Esposito revisitando um caso que investigou décadas atrás e que permanece sem um desfecho satisfatório. Essa inquietação o leva a escrever um romance baseado em suas memórias, um processo que reacende questões não resolvidas e expõe o impacto do passado no presente. O enredo, denso e multifacetado, evoca a habilidade de cineastas como Pedro Almodóvar, em obras como “Tudo Sobre Minha Mãe” e “Abraços Partidos”, mas de uma forma ainda mais introspectiva. Campanella une de maneira magistral eventos aparentemente dispersos, criando uma narrativa que só se revela em sua totalidade ao final.
“O Segredo dos Seus Olhos” propõe uma estrutura narrativa complexa, que desafia as convenções do gênero. Ao dividir a história em duas linhas temporais — o caso Morales em 1974 e as reflexões de Esposito no ano 2000 —, o filme rompe com a linearidade tradicional e exige do espectador um constante esforço interpretativo. A alternância entre os dois períodos, sem pausas longas para acomodar o público, mantém o suspense e a curiosidade em alta. Esse estilo pouco convencional transcende rótulos e redefine a experiência de assistir a um thriller, recusando-se a entregar respostas fáceis ou caminhos previsíveis. Campanella, como um verdadeiro discípulo de Edgar Allan Poe, convida o público a participar ativamente do enigma, transformando a narrativa em um jogo mental intrigante.
A influência de mestres da literatura como Poe e Jorge Luis Borges é evidente. A habilidade de Poe em manipular o suspense e a atmosfera é transportada para o cinema, enquanto a característica borgeana de deixar mensagens veladas e enigmas não resolvidos dá ao filme uma profundidade única. Campanella utiliza recursos visuais para intensificar essa experiência, criando cenas que fragmentam a lógica narrativa e direcionam o espectador a conclusões muitas vezes equivocadas. É um diálogo entre imagem e história que transcende o que a literatura pode oferecer, uma simbiose que eleva o filme a outro patamar artístico.
Os paralelos com Alfred Hitchcock, especialmente com “Um Corpo que Cai”, são inevitáveis. Tanto Esposito quanto o protagonista de Hitchcock, John “Scottie” Ferguson, enfrentam a dificuldade de se desvencilhar de seus passados. Ambos compartilham uma fraqueza que os humaniza — o medo de altura em Scottie e o desconhecimento sobre futebol em Esposito. Essas vulnerabilidades servem como metáforas para os desafios que enfrentam em suas jornadas. Assim como Hitchcock constrói sua narrativa de forma orgânica e meticulosa, Campanella conduz sua trama com fluidez, equilibrando mistério e emoção enquanto explora as complexidades de seus personagens.
Uma cena emblemática do filme ocorre quando Esposito, em 1974, conversa com um homem aparentemente trivial sobre futebol, tema pelo qual não nutre interesse. Campanella utiliza diálogos aparentemente despretensiosos para inserir pistas cruciais, desafiando o público a juntar as peças antes que o protagonista o faça. Esse recurso lembra a habilidade de Hitchcock em transformar detalhes sutis em elementos essenciais para a narrativa, criando camadas de significado que só se revelam com atenção cuidadosa.
Ricardo Darín, no papel de Esposito, entrega uma performance extraordinária, consolidando sua posição como um dos pilares do cinema argentino. Seu personagem, dividido entre o passado que precisa reviver para terminar seu livro e o futuro que o aguarda com respostas há muito buscadas, é uma das figuras mais densas e fascinantes já retratadas. Em “O Segredo dos Seus Olhos”, os olhares, como sugere o título, são fundamentais. O filme é sobre aquilo que não é dito, sobre os detalhes que escapam ao olhar desatento. Campanella nos presenteia com uma narrativa que desafia, surpreende e, acima de tudo, ressoa profundamente — uma obra que deixa marcas na alma do espectador e redefine os limites do que o cinema pode alcançar.
★★★★★★★★★★