“A Caçada” é um filme que não passa despercebido. Sua essência provoca, desafia e ofende, quase como um experimento social cinematográfico. É um daqueles raros filmes que conseguem desagradar a todos em algum momento, e talvez seja exatamente essa a sua maior força. Originalmente previsto para 2019, o filme foi adiado por razões políticas após ser acusado de fomentar divisões em uma América já polarizada. No entanto, sua volta às telas em 2020 mostra que, independentemente das controvérsias, “A Caçada” é mais uma sátira ácida do que uma declaração incendiária.
O enredo apresenta uma releitura de “O Jogo Mais Perigoso”, onde liberais elitistas sequestram conservadores de diversas partes do país para caçá-los como animais. No entanto, em vez de um mero jogo de sobrevivência, o filme se transforma em uma crítica exagerada dos extremos políticos. Os liberais são caricaturados como arrogantes, ricos e obcecados por correção política, enquanto os conservadores são retratados como crédulos, paranoicos e inflamados pelo ódio. Essa abordagem maniqueísta transforma os personagens em espelhos grotescos das nossas divisões sociais, criando uma narrativa que atinge tanto a direita quanto a esquerda.
O destaque do filme reside na habilidade de satirizar ambos os lados com a mesma intensidade, embora isso torne impossível não tomar partido. Seja rindo dos diálogos sobre “apropriação cultural” entre os caçadores ou se incomodando com as teorias conspiratórias dos caçados, o espectador dificilmente sairá indiferente. Mas é exatamente essa imparcialidade que pode incomodar. A tentativa de não adotar um lado político explícito transforma “A Caçada” em uma experiência que desafia as crenças de todos, forçando o público a questionar suas próprias ideologias.
Entre os exageros, a violência se destaca. É extrema, brutal e abrupta, mas dificilmente gratuita. Cabeças explodem, corpos são desmembrados, e até rosquinhas envenenadas entram em cena. Essa estética grotesca contribui para o tom de sátira sombria, mas também reforça o absurdo da premissa. Não é um filme para os fracos de estômago, mas essa abordagem visceral é o que o separa de meros thrillers genéricos, elevando-o à categoria de filme de exploração com alma de sátira.
Apesar da narrativa carregada de estereótipos, dois personagens emergem como os pilares que sustentam o enredo: Athena (Hilary Swank) e Crystal (Betty Gilpin). Swank entrega uma atuação deliciosamente exagerada como a vilã elitista, que combina inteligência cruel e arrogância desmedida. Já Gilpin, no papel da caçada que se recusa a ser vítima, se destaca como o coração do filme. Sua atuação equilibra força física e uma sutileza emocional rara em um roteiro tão direto. É por meio dela que o filme encontra sua única personagem tridimensional, alguém com quem o público pode se conectar genuinamente.
A inevitável batalha final entre Athena e Crystal encapsula tudo o que “A Caçada” tem a oferecer. Em uma cozinha estilizada que parece saída de “Kill Bill”, as duas se enfrentam em um duelo que é ao mesmo tempo absurdamente cômico e visceralmente satisfatório. Essa sequência, dirigida com energia anárquica por Craig Zobel, é um dos pontos altos do filme, mostrando que, apesar de suas falhas, “A Caçada” sabe entregar momentos memoráveis.
Porém, o filme não é perfeito. Sua tentativa de abordar a polarização política muitas vezes cai na armadilha de simplificar questões complexas em caricaturas e frases de efeito. Há tantos “espantalhos” representando os extremos de ambos os lados que, em alguns momentos, a crítica perde a força e se torna confusa. É uma cacofonia de argumentos que, embora intencionalmente exagerados, podem deixar o espectador saturado.
Mesmo assim, “A Caçada” nunca foi concebido para ser uma obra de sutileza. É um filme que se deleita em chocar, mas também em fazer pensar. Entre tiros e ironias, ele deixa um recado claro: talvez os extremos, tanto à esquerda quanto à direita, sejam igualmente absurdos e perigosos. E, nesse ponto, o filme transcende seu status de thriller violento para se tornar um reflexo distorcido de nossas tensões sociais.
No final, “A Caçada” não é a sátira política definitiva que seus criadores talvez desejassem, mas funciona brilhantemente como um filme de exploração inteligente. Ele não apenas reflete o caos de um mundo dividido, mas também provoca o público a confrontar suas próprias certezas. É um filme que, mesmo quando incomoda, entretém — e, em tempos como os nossos, isso já é um grande feito. E o que poderia ser mais americano do que isso?
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