A óbvia menção ao clássico de Sergio Leone (1929-1989) em “Era uma Vez na China e na América” não é por acaso. Como em “Era uma Vez na América”, um forasteiro se lança a um gênero alheio a suas origens, também por isso espinhoso, a fim de entender-se sobre difíceis confrontos por terra, amores malditos, as eternas disputas entre machos cheios de ressentimento, tudo resolvido a bala, claro, mas principalmente a golpes certeiros de artes marciais. Como o italiano Leone, Sammo Hung abusa das cenas com diligências fora de controle, lutas bem-coreografadas em salões tomados de poeira e, por óbvio, as datadas perseguições inter-raciais que mantêm o sentido dessas histórias. Ex-dublê, o honconguês Hung entende do assunto para além da fantasia do cinema, e o roteiro de Sharon Hui, Mei-Yee Sze e Cheuk-Hon Szeto fala de uma época em que decência tinha lugar e homens de verdade como Wong Fei Hung (1847-1925) não toleravam que pairasse numa nesga de dúvida sobre suas atitudes. Temas bastante comuns nas produções asiáticas.
Hung roda seu filme no Texas, com uma equipe americana, mas é fácil acreditar que se trate da China da transição do século 19 para o 20, quando Wong viveu. Pode ser que esse homem modesto seja o remanescente perdido da dinastia Qing, a última casa imperial chinesa, que se manteve no poder por 268 anos, entre 1644 e 1912. Composta pelos manchus, etnia minoritária e nômade vinda do leste da Ásia, a dinastia Qing leva oito anos até se estabelecer de fato, com a conquista de Pequim.
Os Qing são responsáveis por feitos históricos ousados, como persuadir o imperador chinês Shunzhi (1638-1661) a abrir frentes de batalha contra reinos contíguos e dominá-los. Mais de duzentos anos mais tarde, durante uma temporada nos Estados Unidos, Wong escapa de um cerco a sua caravana, padece de uma crise de amnésia e vai parar numa comunidade de indígenas. Pano longo.
O diretor concentra-se na saga de Wong, abrindo a narrativa aqui e ali para alguns personagens que o acompanham. Jet Li incorpora esse anti-herói incomum dando atenção especial a sua alma belicosa, característica ressaltada também pelos adversários que escolhe ter. Billy, o pistoleiro loiro vivido por Jeff Wolfe, presta-se ao melhor ajudante de que um tipo como Wong poderia dispor, e a Décima Terceira Tia de Rosamund Kwan confere um providencial charme feminino neste conto sobre as tensões da virilidade. Sergio Leone, todavia, continua a fazer falta.
★★★★★★★★★★