O cinema, em sua natureza multifacetada, possui uma capacidade singular de atender a diferentes demandas emocionais. Em certos momentos, buscamos nele refúgio e quietude para o corpo e a mente. Em outros, nos submetemos a produções que desafiam nossa compreensão e nos deixam à beira da exaustão, como se cada minuto fosse uma batalha emocional. Essa última experiência é perfeitamente encapsulada pelo enigmático “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020), dirigido por Charlie Kaufman, um autor consagrado por sua habilidade em desconcertar o espectador.
Kaufman, mestre em transformar a perplexidade em arte, vai além de seus trabalhos anteriores como roteirista de “Quero Ser John Malkovich” (1999), “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004) e “Synecdoche, New York” (2008). Em sua adaptação do romance de Iain Reid, ele nos conduz por um labirinto de reflexões que exploram as camadas mais profundas da existência humana. O diretor se apropria do texto original com a liberdade de um visionário, elaborando um discurso que transcende o literal e privilegia a essência literária. Kaufman desafia tanto a narrativa tradicional quanto a própria ideia de profundidade intelectual, frequentemente tratada de forma superficial por muitos artistas contemporâneos.
Desde os primeiros instantes do filme, somos guiados pela voz em off de Jessie Buckley, que interpreta Lucy — ou talvez não, já que sua identidade é fluida, assim como quase tudo na trama. Lucy é apresentada como uma estudante de física com um talento poético que a leva a questionar aspectos universais da condição humana, como o amor e o tempo. Contudo, desde o início, a protagonista deixa claro seu desejo de terminar o relacionamento com Jake, seu namorado, mesmo sem saber explicar exatamente por quê. Essa incerteza dá o tom de sua jornada, marcada por uma viagem rumo à fazenda dos pais de Jake, onde o tempo e a realidade parecem se dissolver na vastidão de uma nevasca interminável.
Jake, interpretado com maestria por Jesse Plemons, não é apenas um acompanhante nessa travessia psicológica. Ele é tanto catalisador quanto enigma, contribuindo para o fluxo de pensamentos caóticos de Lucy. A química entre Plemons e Buckley sustenta boa parte do filme, enquanto diálogos aparentemente banais se desdobram em questões existenciais profundas. À medida que avançam rumo à fazenda, o roteiro revela camadas ocultas de significado, brincando com a percepção do público.
A chegada à fazenda marca uma mudança brusca no tom do filme. Kaufman insere elementos surreais que evocam o onirismo de diretores como David Lynch, mesclando realidade e ilusão em um equilíbrio precário. Os pais de Jake, interpretados por Toni Collette e David Thewlis, aparecem em diferentes idades, como se fossem reflexos distorcidos de memórias fragmentadas. Lucy, por sua vez, começa a perder a consistência de sua própria identidade, transformando-se em uma figura mutável que reflete não apenas suas escolhas, mas também as projeções de Jake.
Enquanto a narrativa avança, o filme expande suas referências culturais, conectando temas como o ensaio de David Foster Wallace sobre a televisão e a crítica de Pauline Kael a “Uma Mulher sob Influência” (1974). Essas discussões, por mais intelectuais que pareçam, não são gratuitas: elas reforçam o senso de isolamento e incompreensão que permeia a vida de Lucy e Jake. As alusões a suicídios, como o de Wallace, ecoam o título da obra, sugerindo que “acabar com tudo” pode ser interpretado de múltiplas maneiras, seja como um rompimento literal ou como uma tentativa de transcender a realidade insuportável.
A jornada culmina em paradas aparentemente desconexas — uma sorveteria e uma escola abandonada — que servem como símbolos das lembranças de Jake. Nesse ponto, o filme abandona qualquer pretensão de linearidade. A figura do zelador, interpretada por Guy Boyd, emerge como um espelho do futuro de Jake, refletindo o peso do tempo e das escolhas não feitas. Lucy, confrontada por essa visão, é forçada a considerar se vale a pena prosseguir em um caminho que parece destinado ao arrependimento.
O desfecho de “Estou Pensando em Acabar com Tudo” é tão ambíguo quanto o resto do filme, mas também profundamente simbólico. Kaufman sugere que, apesar de toda a turbulência, há a possibilidade de uma espécie de reconciliação, ainda que ela seja alcançada apenas no domínio dos sonhos. A complexidade do filme exige uma entrega total do espectador, que deve abandonar as certezas do cotidiano para mergulhar em um universo onde a lógica cede lugar à introspecção.
Assistir a este filme não é um ato passivo. É uma experiência que desafia, consome e, em última análise, recompensa. Para apreciá-lo plenamente, talvez seja necessário um afastamento da distração das telas pequenas, permitindo que sua densidade filosófica ocupe todo o espaço que merece. Assim, o convite é claro: deixe-se consumir pela obra, pois é nesse confronto entre sonho e realidade que Kaufman encontra sua força.
★★★★★★★★★★