Uma das primeiras medidas de regimes autocráticos é silenciar a arte que desafia o status quo. Florian Henckel von Donnersmarck explora essa repressão em “Nunca Deixe de Lembrar”, um filme que não apenas reflete sobre os horrores do nazismo, mas também sobre a natureza essencialmente transformadora da arte. Inspirado na vida do renomado pintor Gerhard Richter, o longa tece uma narrativa que atravessa décadas, examinando como diferentes sistemas opressivos tentaram, sem sucesso, subjugar o espírito criativo.
Richter, nascido em 9 de fevereiro de 1932, é uma das figuras centrais da arte contemporânea, e sua trajetória serve como base para o personagem Kurt, vivido por Tom Schilling. Desde cedo, Kurt enfrenta a rígida censura nazista, que define o que é “arte aceitável”. Com a ascensão do realismo socialista no pós-guerra, ele descobre que o comunismo não é menos tirânico no controle da expressão artística. Este ciclo de repressão é retratado por Von Donnersmarck como um reflexo sombrio de sistemas que veem na arte uma ameaça, um lembrete incômodo da liberdade que tanto temem.
Ao longo de suas três horas, o filme desenvolve uma trama rica e sem pressa, evocando a grandiosidade literária de Tolstói em “Guerra e Paz” e “Anna Kariênina”. O jovem Kurt, introduzido ao público através da atuação de Cai Cohrs, cresce em um ambiente dominado por restrições culturais e políticas. Sua tia Elisabeth (Saskia Rosendahl), internada em um programa nazista de esterilização compulsória, é uma das primeiras vítimas do regime que também influencia a trajetória artística de Kurt. Essas experiências traumáticas moldam sua visão de mundo, influenciando profundamente sua arte.
Na Berlim do pós-guerra, já adulto, Kurt tenta estudar artes sob as regras impostas pelo realismo socialista. Ele se apaixona por Ellie (Paula Beer), cuja família aristocrática representa outro tipo de opressão: Carl Seeband (Sebastian Koch), pai de Ellie, é um médico que esconde um passado sombrio, revelando-se um personagem repleto de ambiguidades morais. Este triângulo entre Kurt, Ellie e Carl é o cerne do enredo, explorando os limites entre arte, moralidade e poder.
O filme também revisita momentos históricos que expõem a relação problemática entre regimes autoritários e a arte. Em 1937, o Partido Nazista organizou uma exposição dedicada a ridicularizar obras de artistas como Picasso, Mondrian e Kandinsky, denunciando suas criações como “degeneradas”. Essa iniciativa, promovida como uma celebração da “arte pura”, revelou-se uma tentativa de apagar a liberdade criativa e reforçar a ideologia nazista. Para Hitler, um pintor fracassado, a arte se tornou um alvo fácil, um campo de batalha onde ele poderia projetar suas frustrações e sua visão distorcida do mundo.
A narrativa de “Nunca Deixe de Lembrar” desloca essa história para Dresden, onde o jovem Kurt testemunha a exposição nazista com sua tia Elisabeth. A forma como ela reage àquela demonstração grotesca de desprezo pela criatividade é uma lição silenciosa, mas poderosa, que molda a relação de Kurt com a arte. Para Von Donnersmarck, essa cena é emblemática: a arte nunca deve ser utilitária ou subjugada por agendas políticas.
À medida que a Segunda Guerra Mundial se desenrola e as forças aliadas triunfam sobre o Eixo, a arrogância megalomaníaca de Hitler é substituída por outra forma de opressão: a ideologia comunista do pós-guerra. Kurt enfrenta novos desafios enquanto busca uma forma de expressão que transcenda os limites impostos por sistemas que veem na liberdade criativa uma ameaça.
Se há uma mensagem central no filme, é que a arte, em sua essência, resiste a qualquer tentativa de domesticação. Ela existe porque a vida, por si só, é insuficiente. Florian Henckel von Donnersmarck constrói um retrato profundo e multifacetado dessa verdade universal, entregando uma obra que não apenas honra a história de Gerhard Richter, mas também celebra a resiliência da criatividade humana.
“Nunca Deixe de Lembrar” é um lembrete poderoso de que, mesmo em meio à escuridão mais profunda, a arte continua a iluminar caminhos de esperança e resistência. Gerhard Richter, ainda ativo aos 92 anos, personifica essa verdade, provando que a criação é uma forma de liberdade que nenhum regime pode extinguir.
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