O dia em que Brian De Palma vendeu sua alma ao rock and roll Divulgação / Solaris Distribution

O dia em que Brian De Palma vendeu sua alma ao rock and roll

O cineasta norte-americano Brian De Palma é conhecido por ter realizado a primeira adaptação do livro de Stephen King: “Carrie, A Estranha” (1976), pela violenta versão de “Scarface” (1983) e pelo estilizado “Os Intocáveis” (1987). Uma das características mais marcantes do diretor é sua habilidade em inserir, em seus filmes, referências a outras obras artísticas, principalmente às de seu grande ídolo Alfred Hitchcock. Entre tantos sucessos, há na filmografia de De Palma uma película que merece ser redescoberta, justamente por promover um diálogo entre várias linguagens da expressão artística, notadamente a música e a literatura, além do próprio cinema.

Realizado antes do sucesso internacional de “Carrie”, o filme “O Fantasma do Paraíso” (1974) é uma deliciosa mistura de gêneros cinematográficos: drama, comédia, musical, suspense e terror, além de suas citações literárias e musicais. Tendo a música no centro da trama, a história gira em torno de Winslow, um compositor talentoso e desconhecido, Swan, um inescrupuloso produtor musical, e uma jovem e promissora cantora chamada Phoenix.

Swan engana o compositor Winslow ao roubar sua música sob o pretexto de produzi-la. A intenção de Swan é inaugurar sua casa de espetáculos, chamada Paradise, com a música roubada. Ao descobrir que foi passado para trás, Winslow busca de todas as maneiras ter acesso ao produtor, mas é sempre impedido pelos seus capangas. Numa de suas tentativas, ele escuta sua música sendo cantada por Phoenix e conclui que a voz dela é perfeita para sua obra. Após ser sucessivamente enganado por Swan, Winslow acaba injustamente sendo preso. Num acesso de fúria, ele escapa da prisão e vai atrás de Swan, porém é vítima de um acidente que lhe desfigura o rosto. A partir daí, Winslow assume a identidade de Fantasma (com roupa preta, capa e máscara de coruja) e passa a “assombrar” a casa de espetáculos criada por Swan, numa referência ao livro “O Fantasma da Ópera”, de Gaston Leroux.

Swan sabe que o Fantasma é Winslow e, em mais uma artimanha, faz um acordo com ele para a composição de uma cantata rock baseada no “Fausto”, de Goethe. Assim como no livro, o contrato entre os dois é assinado com sangue. Winslow exige que Phoenix seja a principal cantora, mas o ardiloso Swan tem outras intenções e tranca Winslow em uma sala de gravação após ele concluir a cantata. A intenção de Swan é entregar o papel principal ao cantor andrógino Beef. A figura estranha e robótica de Beef nos remete ao monstro do livro “Frankenstein”, de Mary Shelley.

O Fantasma consegue escapar e ameaça Beef de morte caso ele cante novamente sua música. Esta cena é uma paródia da cena do chuveiro de “Psicose”, de Alfred Hitchcock. Na noite de estreia, a decoração do show de inauguração do Paradise nos lembra o filme expressionista “O Gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Wiene. Beef acaba sendo eletrocutado pelo Fantasma quando sobe ao palco, e Swan rapidamente o substitui por Phoenix, que é ovacionada pela plateia.

Em determinado ponto da trama, ficamos sabendo que Swan, no intuito de se manter sempre jovem e rico, fez um pacto demoníaco gravado em videocassete, numa situação semelhante à do personagem principal do livro “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde.

A fim de obter mais vantagens, Swan seduz Phoenix com promessas de estrelato. O Fantasma tenta convencer a cantora dos planos sujos de Swan, porém ela não acredita nele. O filme prossegue, recheado de citações, nesse embate entre o desejo artístico e de vingança de Winslow/Fantasma e o desejo por poder e dinheiro de Swan, com Phoenix no meio do fogo cruzado. O final trágico é também a redenção da alma de Winslow.

A trilha sonora foi composta pelo ator e músico Paul Williams, que faz o papel de Swan. Um resumo evolutivo do rock é mostrado no filme, que se inicia com um rock and roll típico dos anos 1950, a cargo dos Juicy Fruits, passa pelo pop rock praiano dos anos 1960, com os Beach Bums, e vai até o glam rock ao estilo de David Bowie, que estava em voga no ano de lançamento do filme, com Beef e os Undeads. Um detalhe curioso é que, em dado momento, o Fantasma tenta suicidar-se com uma faca da marca Bowie.

O elenco principal é composto por Paul Williams (Swan/partes cantadas pelo Fantasma), William Finley (Winslow/Fantasma) e Jessica Harper (Phoenix). A soma de tantos elementos resulta em um filme divertidíssimo, que sempre dá vontade de rever quando é reprisado na TV, pois com certeza descobriremos novos detalhes saborosos. Podemos até perceber ecos do livro “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo.

“O Fantasma do Paraíso” infelizmente não está disponível em nenhum serviço de streaming no Brasil, mas pode ser encontrado na Amazon dos EUA.