Quando cinema e psicanálise se encontram: o filme da Netflix que todos deveriam assistir Divulgação / Netflix

Quando cinema e psicanálise se encontram: o filme da Netflix que todos deveriam assistir

Nada é mais emblemático para casais enfrentando turbulências na relação do que uma tentativa de reavivar os laços com gestos que remetem à paixão juvenil. Saem os dois, perdidos e hesitantes, à procura de um motivo que possa impedir o inevitável desmoronamento. As relações amorosas, quase sempre marcadas por crises, muitas vezes levam as pessoas a recorrer a ações impulsivas, como um afastamento estratégico, na esperança de reacender a chama apagada. Contudo, por trás de problemas que podem parecer triviais, geralmente se escondem questões mais profundas e complexas, exigindo transformações sinceras e mútuas. Investigar as raízes dessas mágoas acumuladas, muitas vezes impregnadas por traumas do passado, é um caminho árduo, mas necessário. Medidas paliativas, que ignoram a necessidade de mudanças genuínas e se limitam a esforços unilaterais, estão fadadas ao fracasso. Relações que já sofrem com ressentimentos corrosivos podem facilmente ultrapassar o ponto de recuperação, tornando-se irreparáveis sob a falsa impressão de que o sabor do vínculo permanece intacto.

Mike Flanagan, em sua adaptação de “Jogo Perigoso”, aplica uma abordagem visceral e meticulosa, característica marcante de seu estilo. O diretor transforma o material original em um veículo para explorar questões que demandam mais do que atenção superficial. O romance de Stephen King, publicado no Brasil em 1992, não está entre os mais aclamados do autor, mas é reconhecido por sua complexidade narrativa. No livro, King utiliza intensamente o fluxo de consciência, deixando em aberto se as vivências da protagonista são delírios ou possuem algum fundamento concreto. A trama é pontuada por reflexões profundas e monólogos que, muitas vezes, envolvem o leitor em uma espiral de autoconfronto. Embora o cenário limitado — boa parte da história se passa em um único quarto — possa parecer um desafio para prender o público, Flanagan transforma esse possível obstáculo em um triunfo. Ele descarta qualquer limitação imposta pelo material original e explora ao máximo os recursos cinematográficos para manter a narrativa envolvente.

Desde o início, o filme estabelece a dinâmica dos protagonistas com fragmentos da rotina do casal, que planeja uma breve viagem na esperança de romper com a monotonia que permeia a relação. Gerald, interpretado por Bruce Greenwood, é um advogado bem-sucedido, mas é Jessie, vivida por Carla Gugino, quem se torna o eixo central da narrativa. A preparação para a viagem, com malas arrumadas meticulosamente, já sinaliza a intenção de reviver algo que há muito parece perdido. Durante o trajeto para a casa no lago, os primeiros sinais de desconexão emergem em uma cena carregada de silêncio desconfortável, acentuada por uma discussão sobre música. Em seguida, a aparição de um pastor alemão no caminho, que retorna mais tarde atraído por um pedaço de carne, serve como metáfora para o desconforto crescente entre o casal e prenuncia os eventos que se desenrolam no segundo ato.

Já no quarto, Gerald tenta colocar em prática um plano que acredita ser sua chance de reconquistar a esposa. No entanto, o jogo que ele propõe — representado pelo objeto cuidadosamente colocado na bagagem — revela-se um erro fatal. A tensão atinge seu ápice quando Jessie, mesmo imobilizada, expressa seu desconforto de maneira inequívoca. É nesse momento que a narrativa se desdobra em uma espiral de terror psicológico. Gerald sofre um colapso inesperado, deixando Jessie presa à cama, enquanto o pastor alemão retorna, agora como uma presença inquietante que intensifica o clima opressor. O passado de Jessie emerge como um redemoinho de memórias traumáticas, apresentado por Flanagan em uma série de flashbacks cuidadosamente elaborados. A fotografia, dirigida por Michael Fimognari, utiliza tons vermelhos intensos para amplificar a sensação de sufocamento e agonia vivida pela protagonista.

Essas reminiscências revelam as origens do desconforto de Jessie com a dinâmica imposta por Gerald, expondo feridas emocionais há muito enterradas. Embora o clímax do filme seja impactante, a sequência de tribunal que encerra a narrativa poderia ter sido suprimida, já que tende a diluir parte da força emocional construída ao longo da história. Apesar disso, a adaptação de Flanagan oferece uma experiência envolvente e instigante, convertendo um romance desafiador em uma análise poderosa sobre traumas, culpa e a complexidade das relações humanas.

Filme: Jogo Perigoso
Diretor: Mike Flanagan
Ano: 2017
Gênero: Terror/Thriller
Avaliaçao: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★