Dia 16 de novembro. 18h. Entro no cinema para assistir “Ainda Estou Aqui”. Exatamente 2h15min depois, ao deixar o cinema, saio outro. Exagero? De maneira alguma. Explico. A função da obra de arte, em linhas gerais, é materializar uma ideia de maneira sensível, que toque o íntimo de cada um que a aprecie. Misto de troca de sentidos e significados, sem perder a sua função estética.
O tema da película, por si só, já é muito sensível. Fala de memória, de perda, de superação. Mas também de ausência, de prepotência, de bestialidade. E, ainda: de história, de política, de sociologia. No entanto, sem incorrer em academicismo. E o foco é o microcosmo de uma família que se vê envolvida por uma tragédia. O seu ciclo de vida é interrompido por um acontecimento inesperado. Por isso, é um drama.
A memória (viva) da família Paiva não pertence só a ela. É coletiva. Por isso, inquieta. Assim como provoca fascínio. É como um rio que corre por baixo de uma camada de gelo. Nós não o vemos. Mas ele está lá, presente. Permanece. Memória delicada, afiada, cortante. Sacode a alma com doses (equilibradas) de beleza e emoção.
Walter Salles, o diretor, busca iluminar um período obscuro de nossa história. Ao adentrar esse universo, somos surpreendidos pelo poder da imagem e pela potência da narrativa. Ficamos em suspenso pelo que parece banal. O que nos espera? A certa altura, na terceira fase do filme, diante do olhar expressivo de Fernanda Montenegro (Eunice Paiva), verifico de relance, em poltronas a meu lado, alguns olhos marejados. Confesso: também não contive lágrimas furtivas.
E isso face a uma história narrada que não chega a ser original. Mas “Dom Quixote”, que inaugurou o romance moderno, também não era. O que a faz única é a forma de contar. A habilidade de diferenciá-la. De separar o joio do trigo. E isso se faz ao fugir dos estereótipos; ao abandonar os lugares-comuns; ao rejeitar os chavões e frases-feitas. Mas, sobretudo, não se deixar sugar pelo sentimentalismo piegas.
Ao retratar o cotidiano de uma família de classe média, Walter Salles nos faz mergulhar no oceano da empatia. Somos nós que estamos ali. É cada um, que acompanha cada take, que se vê tragado por aquele enredo. “Poderia ter sido comigo. Poderia ser a minha família. Poderia ser o meu pai”, ficamos a imaginar. Diante de nossos olhos desfila todo um contexto histórico, social e cultural.
Sem didatismo, sem discursos rebuscados e sem simplismo, somos convidados a decifrar os significados daquele período histórico. A reconstituição de época, os figurinos, a trilha sonora, o desempenho excepcional dos atores, pegam na mão de cada espectador e os leva a um outro mundo, de um outro tempo, que descobrimos nosso. Ele nos pertence. Aquele tempo, é o nosso tempo, porque somos amálgama do nosso passado. Somos memória, somos história. Por isso, “Ainda Estou Aqui”, está dentro de cada um de nós.
Bem, e o que isso tem a ver com jornalismo literário? Tudo. Para se contar uma boa história, usa-se a criatividade; a originalidade da forma. Busca-se o equilíbrio, comedimento e sobriedade. Não ultrapassar a tênue fronteira entre drama e dramalhão. Isso é o que faz a diferença entre uma obra comum de outra que é fora de série; acima da curva. Vale para um texto de jornalismo literário ou para uma película de cinema. Deve tocar nossa sensibilidade, nosso íntimo, pelos seus pormenores, pelas sutilezas, pelos simbolismos.
Quando não a deciframos, mas ela é quem nos decifra.