Um faroeste como você nunca viu: o filme da Netflix que te coloca dentro da história Divulgação / Netflix

Um faroeste como você nunca viu: o filme da Netflix que te coloca dentro da história

A obsessão dos irmãos Ethan e Joel Coen pelo lado mais sombrio da natureza humana encontra uma expressão arrebatadora em “A Balada de Buster Scruggs”. A antologia, composta por seis narrativas ambientadas na América profunda, explora um período em que a luta pela sobrevivência relegava a segundo plano conceitos como inclusão, justiça ou civilidade. Este é, sem dúvida, um dos projetos mais poéticos da dupla, utilizando o faroeste como cenário para uma incisiva reflexão sobre as origens da sociedade americana. Através de histórias permeadas por caçadas implacáveis, traições e sonhos desfeitos, os Coen traçam um retrato brutal de uma nação em formação, onde vidas eram negociadas como mercadorias e a violência era tanto um meio quanto um fim. As tramas, cada qual singular, convergem para um núcleo comum de desesperança e brutalidade, mas uma delas se destaca pela maestria quase absoluta.

O filme abre de forma simbólica, com uma mão áspera folheando um livro de capa verde, de onde emergem as histórias. A primeira delas apresenta Buster Scruggs, um forasteiro que usa um traje impecavelmente branco, do chapéu às botas, e monta um cavalo igualmente claro. Carregando um violão negro, ele atravessa paisagens desoladas enquanto sua voz, de forte sotaque caipira, ecoa por desfiladeiros que evocam um ambiente quase mítico. Vindo de uma longa jornada desde Medicine Hat — uma vila canadense conhecida por seus salões movimentados, mas desprovida de igrejas ou autoridades —, Scruggs é uma figura contraditória: um fora da lei ciente de seus crimes, mas que rejeita ser rotulado como misantropo. Apelidado de “Sabiá de San Saba”, ele se destaca por sua personalidade excêntrica e um peculiar senso de decoro, que o diferencia dos outros marginais que cruzam seu caminho.

Tim Blake Nelson dá vida a Scruggs com uma interpretação memorável, imbuída de um carisma enigmático que contrasta com sua natureza violenta. Apesar de sua aparente despreocupação, o personagem carrega um profundo sentimento de alienação, que encontra alívio em suas baladas musicais. O roteiro dos Coen, irônico e astuto, utiliza Scruggs para desconstruir os arquétipos clássicos do faroeste, em uma narrativa que oscila entre a paródia e a reverência ao gênero. Este equilíbrio refinado confere à história um tom singular, ao mesmo tempo divertido e melancólico.

Embora cada uma das seis histórias tenha mérito próprio, é em “Cânion de Ouro” que o espírito do filme atinge seu ápice. A trama acompanha um velho garimpeiro, interpretado por Tom Waits, que desafia a solidão e o tempo em busca de um ouro que parece tão ilusório quanto essencial para justificar sua existência. Isolado em um vale deslumbrante, o personagem dedica-se à tarefa ingrata de escavar o solo em busca de riqueza, em uma jornada que combina determinação, loucura e um toque de poesia. A performance de Waits, visceral e cativante, é amplificada pela direção dos Coen, que transforma o cenário natural em um espelho das aspirações e frustrações do protagonista.

À medida que o velho garimpeiro avança em sua busca, a narrativa alterna momentos de introspecção e tensão, culminando em reviravoltas de impacto devastador. A fotografia de Bruno Delbonnel intensifica a experiência, contrastando a vastidão paradisíaca da paisagem com o confinamento opressor de uma cova cavada pelo personagem. A sequência final de “Cânion de Ouro” é um espetáculo de emoção e técnica, consolidando-se como um dos momentos mais notáveis não apenas do filme, mas do cinema recente.

Apesar de sua originalidade, “A Balada de Buster Scruggs” remete a obras anteriores, como “Páginas da Vida” (1952), que também reúne histórias independentes em torno de temas universais como amor, perda e redenção. No entanto, a abordagem dos Coen transcende a simples homenagem, renovando o formato com um estilo inconfundível que combina humor ácido, crítica social e uma estética apurada.

No conjunto, o filme se revela uma das realizações mais sofisticadas e ousadas dos irmãos Coen. Com atuações marcantes — incluindo as de Harry Melling e Zoe Kazan em outros segmentos —, a obra confirma o talento da dupla em transformar o ordinário em extraordinário. E, entre tantos méritos, destaca-se a colaboração inspirada de Tom Waits, que adiciona uma camada única de autenticidade e emoção a esta fascinante exploração da condição humana.

Filme: A Balada de Buster Scruggs
Diretor: Ethan e Joel Coen
Ano: 2018
Gênero: Drama/Faroeste
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★