A vida é doce feito um caramelo

A vida é doce feito um caramelo

O pai tomou birra pelo cachorro desde que o danado começou a urinar sangue pelos cantos. Regra geral, não se permitia que o vira-latas circulasse dentro de casa, por conta da asma do filho menorzinho. Mesmo sentindo que contrariava as normas, ultimamente, o caramelo se infiltrava pelos cômodos e pelos corredores onde marcava o território com a sua urina fétida colorida por coágulos.

O pai mandava os filhos limparem o xixi e ruminava como é que resolveria a situação. O cão fora adotado há dez anos, quando entrou na agência dos Correios e foi se aninhar justamente aos seus pés. Era inevitável que todos tivessem pelo animal um afeto desmesurado, pois, além de afável e brincalhão, tomava conta da casa com latidos estridentes o bastante para afugentar delinquentes mequetrefes que invadiam residências da região para surrupiar pequenos pertences.

O pai considerou levar o pet numa clínica veterinária, mas, sabia bem que não era plausível pagar os honorários, os exames complementares e o tratamento propriamente dito. Se não controlasse os gastos supérfluos, a conta rebentava no final do mês, deixando a família num baita perrengue financeiro.

A mãe quis sofrer uma síncope quando o pai comentou que tinha pensado em botar veneno na comida. Não dava para adiar, ele disse. Quem poderia assegurar que a doença não fosse transmissível aos filhos? Enxugando o rosto no avental, a mulher argumentou que matar o caramelo era um ato de maldade extrema, um pecado medonho, uma judiação sem tamanho, considerando o amor fraternal que todos sentiam por ele.

O pai concordou que exterminar com chumbinho era mesmo uma atrocidade. No frigir dos ovos, ainda teriam que lidar com o bicho morto, dar sumiço na carcaça antes que os filhos demandassem enterrá-la no fundo do quintal, perto das bananeiras, no cemitério dos passarinhos. Por fim, decidiu embarcar o dogue na Kombi e soltá-lo na periferia da cidade. O que os olhos não viam o coração não sentia.

Desta feita, o pai não pesquisou a opinião da companheira. Tão somente, comunicou que a decisão eram favas contadas. Quem calava consentia. Sucedeu assim: numa manhã de domingo, o pai alimentou o totó com sobras de comida, embarcou-o na Kombi e dirigiu cerca de vinte minutos até a altura do trevo. Daí, com a garganta travada de pena, estacionou no acostamento, deixou o motor ligado, desceu da cabine, abriu a porta de trás e atirou um suculento naco de carne crua no meio do capinzal. Apesar do adiantado grau de anemia, o cãozinho saltou no capim alto, enquanto o dono corria até o volante e metia o pé no acelerador. Com o coração acelerado, espiou pelo retrovisor com olhos de constrangimento, mas, não enxergou nenhum vestígio de dignidade na estrada.

Assim que as crianças acordaram, o pai explicou que alguém tinha esquecido o portão da frente aberto, por onde o caramelo escapara no meio da noite e, até o momento, não tinha retornado. A choradeira foi geral. Mamãe colocou o mais novinho no colo, afagou, beijou, consolou e comentou que, se Deus quisesse, o danadinho voltaria.

Não dava para intuir se Deus quis ou se Deus não quis, mas, fato foi que o caramelo amanheceu deitado na calçada, em frente ao portão que alguém tinha esquecido fechado. Perplexo com o regresso do animal enfermo, o pai se enervou. Matar não podia. Doar não convinha. Resoluto, reuniu a família na copa e explicou que o caramelo estava muito doente, mijando sangue, perdendo peso, ganindo baixinho, colocando em risco a saúde de todos com uma moléstia certamente contagiosa, portanto, não tinha outro remédio senão remediar, soltar o pobrezinho num local distante, de tal forma que ele passaria a morar no meio do mato, a dormir em cavernas, a se virar sozinho como era de praxe entre os animais livres da natureza. Com os coraçõezinhos moídos, a meninada ouviu o pai decretar que, no próximo sábado, a família levaria o caramelo para o seu último passeio.

Atolada no barro do remorso, a mãe inquiriu o esposo se era mesmo necessário compartilhar com a prole uma experiência tão triste, tão marcante, tão devastadora. Ele garantiu que o procedimento era, sim, indispensável, carregado de componentes didáticos, uma demonstração prática e inequívoca de que a vida era sim uma gangorra que oscilava entre momentos bons e momentos ruins.

C’est la vie. O pai instruiu o primogênito para apanhar na gaveta da geladeira um pedaço de músculo de boi in natura. Desta feita, foi mais precavido: dirigiu longe, longe, muito longe pela rodovia até o limite entre os dois municípios. Não se ouvia um piu dentro da velha Kombi, senão, as últimas notícias sobre a Copa do Mundo de 1974, o arfar do sorumbático animal e o chupar ruidoso de lágrimas pelas miúdas narinas tristes.

Quando encontrou um recanto supostamente adequado, o pai deu meia volta no carro, estacionou no acostamento, deixou o motor ligado, desceu da cabine, abriu a porta de trás, estumou o caramelo estalando os dedos e arremessou o bife, o mais distante que conseguiu, na direção do matagal.

Mesmo caquético, mesmo farejando um cheiro de traição no ar, o caramelo saltou confiante na relva e desapareceu para nunca mais voltar, senão, anos mais tarde, na memória afetiva do filho caçula que virou escritor e contou a história.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.