O cinema chileno, ao lado de sua contrapartida argentina, tem se afirmado como um polo de inovação e sofisticação dentro da América Latina, e, recentemente, a cineasta Maite Alberdi tem sido uma das grandes responsáveis por impulsionar essa reputação. Após o sucesso de “A Memória Infinita” (2023), que conquistou uma indicação ao Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem, abordando com sensibilidade a luta de um casal contra o Alzheimer, Alberdi amplia seu repertório com “No Lugar da Outra”. Em sua mais recente obra, ela se lança em um projeto desafiador, que mistura elementos de romance policial e biografia, marcando uma nova fase de sua carreira e levando suas ambições artísticas a um novo patamar.
Em “No Lugar da Outra”, Alberdi se apropria da história de María Carolina Geel (1913-1996), uma escritora chilena de grande notoriedade, cuja vida e obra são pouco conhecidas pelo grande público. O filme se inspira no livro “As Homicidas”, de Alia Trabucco Zerán (2023), e, ao fazer isso, cria um retrato fascinante de uma mulher que atravessa um universo de emoções intensas, conflitos pessoais e grandes tragédias. A narrativa revela, ainda, a maneira como as mulheres são frequentemente forçadas a lidar com as contradições de uma sociedade patriarcal, na qual os homens têm a permissão para praticar atos extremos em nome da honra, enquanto as reações femininas a essas ações são vistas com condenação. Ao longo do filme, Alberdi, em colaboração com suas co-roteiristas Inés Bortagaray e Paloma Salas, desenvolve essa crítica sem recorrer a discursos panfletários, mas de forma sutil e instigante, que convida o espectador a refletir sobre as contradições que ainda permeiam nossas estruturas sociais.
A trama se passa em 1955, um período marcado por charme e sofisticação na sociedade chilena, distante ainda das sombras da futura ditadura de Augusto Pinochet. O palco principal da narrativa é o luxuoso Hotel Crillón, localizado na rua Agustinas, no coração de Santiago, um lugar repleto de Cadillacs e uma aura de elegância. Mas, ao contrário do que se poderia esperar de uma cena de glamour, tudo se transforma quando disparos interrompem o fluxo da noite. Uma mulher, trajando um casaco lilás manchado de vermelho, rapidamente se torna o centro das atenções: trata-se de María Carolina Geel, que, após descobrir a infidelidade de seu amante, não hesita em atirar nele.
Alberdi se utiliza de uma combinação de drama e tensão para criar um clima tenso e envolvente, misturando elementos do tango andino com toques de surrealismo, que deixam a história ainda mais hipnótica. Além disso, a cineasta insere referências sutis à poeta Gabriela Mistral, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1945, e ao presidente Carlos Ibáñez del Campo, além de mencionar outra escritora, María Luisa Bombal, que também se envolveu em um episódio de violência no mesmo hotel, em 1941, embora com um desfecho bem diferente para o homem em questão.
A narrativa dá uma guinada interessante ao focar, na segunda parte do filme, na personagem de Mercedes, a secretária do juiz responsável pelo caso de Geel. Essa mudança de foco marca uma transformação na abordagem do filme, que deixa de ser centrado no triângulo amoroso para se tornar um estudo psicológico mais profundo sobre a personagem de Mercedes. A partir deste ponto, “No Lugar da Outra” ganha uma nova camada de complexidade, ao explorar as nuances de uma mulher submissa ao monotônico cotidiano, mas que começa a se libertar ao se envolver com o processo judicial e se aproximar do mundo da escritora. Mercedes, que antes se limitava a seu trabalho de secretária, passa a frequentar o apartamento de Geel, fazendo com que sua vida e valores entrem em choque com sua realidade mundana.
A interpretação de Elisa Zulueta, que dá vida à personagem de Mercedes, é um dos pontos altos do filme. Sua atuação é marcada pela sutileza e pela intensidade com que transmite o fascínio de sua personagem por um mundo que lhe é completamente alheio, mas ao qual ela se sente irresistivelmente atraída. Por outro lado, a interpretação de Francisca Lewin, no papel de María Carolina Geel, é igualmente impressionante, trazendo à tona uma mulher de emoções reprimidas e uma energia contida, que se revela em momentos de grande tensão. A interação entre essas duas personagens, com suas diferentes visões de mundo e suas próprias lutas internas, gera um conflito moral que não apenas enriquece a trama, mas também propõe uma reflexão profunda sobre os caminhos do desejo, da violência e da repressão.
Com “No Lugar da Outra”, Maite Alberdi entrega uma obra cinematográfica de grande profundidade, que se distingue por sua sofisticação estética e pela maneira como aborda questões universais, como o papel da mulher na sociedade e as complexidades da identidade feminina. Ao evitar a tentação do sensacionalismo e do discurso simplista, a cineasta oferece ao público uma narrativa sutil e cheia de camadas, que exige uma participação ativa do espectador, convidando-o a questionar os conceitos de moralidade e justiça. É um filme que, ao mesmo tempo, seduz pela sua elegância e desvia-se das convenções do gênero, criando uma experiência única que se destaca no atual panorama do cinema latino-americano.
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