A existência humana transita entre dois papéis fundamentais: o das vítimas e o dos algozes. Pertencer ao primeiro grupo requer a coragem de um soldado marchando para a batalha, mas nem sempre por uma causa nobre. Muitos que abraçam essa condição o fazem mais pelo que a guerra simboliza para si mesmos do que por valores elevados como honra ou patriotismo, que sustentam a identidade de nações dignas de respeito global. Movido por seus impulsos mais arcaicos, o ser humano frequentemente se rende ao fascínio da violência, ignorando os benefícios da diplomacia e permitindo que divergências banais, muitas vezes nascidas de mal-entendidos, escalem para tragédias evitáveis.
No entanto, em um mundo repleto de enigmas, onde muito permanece além de nossa compreensão, como Shakespeare observou, é fundamental nos comprometermos com a defesa intransigente da vida e seus valores. Embora o esforço para trilhar o caminho correto varie entre indivíduos — alguns com mais convicção que outros —, o perigo está nos múltiplos desvios que levam, invariavelmente, a um destino sombrio: a autodestruição.
Cada história de vida carrega o potencial de um grande enredo, o que deveria fazer de viver um ato sagrado, independentemente de quem somos ou de nossas circunstâncias. Somos todos uma combinação de virtudes que nos elevam e fraquezas que nos humanizam, desde que saibamos reconhecê-las e utilizá-las como fonte de aprendizado. É essa complexidade que Craig Zobel explora de forma contundente no thriller “A Caçada” (2020), onde questões filosóficas profundas se entrelaçam com críticas sociais afiadas. O filme desafia o espectador ao abordar o desprezo que os privilegiados reservam àqueles relegados ao escanteio da sociedade. Por meio de uma narrativa crua e impactante, Zobel conduz o público a um mergulho nos aspectos mais sombrios da natureza humana, examinando temas como a militarização civil, preconceitos raciais e econômicos, intolerância política e a propensão humana à violência como ferramenta de controle.
O roteiro, escrito por Damon Lindelof e Nick Cuse, apresenta momentos de ironia fina e crueldade velada, exemplificados logo na abertura. Richard, um multimilionário interpretado por Glenn Howerton, protagoniza uma cena emblemática ao humilhar a aeromoça Liberty, vivida por Teri Wyble. O diálogo encapsula a distância entre os mundos que os personagens ocupam: enquanto Richard recusa caviar osseta por estar “enjoado” da iguaria, Liberty, que o serve com frequência, nunca teve a oportunidade de experimentá-lo. Essa disparidade, marcada por sutilezas linguísticas, prepara o terreno para a sequência de perseguições violentas que dá nome ao filme, um espetáculo visual aprimorado pela direção de fotografia de Darran Tiernan, que equilibra luz e sombra para intensificar o suspense.
Betty Gilpin assume o protagonismo como Crystal Creasey, cuja força bruta contrasta com a vulnerabilidade inicial de Yoga Pants, personagem de Emma Roberts. As duas, colocadas como presas em um jogo macabro, representam o absurdo de um cenário onde vidas humanas são transformadas em entretenimento para os poderosos. Crystal emerge como uma anti-heroína implacável, guiada mais pelo instinto de sobrevivência do que por qualquer senso de altruísmo. À medida que a trama avança, revela-se que essas pessoas foram sequestradas e transportadas para uma locação remota, talvez na Europa Oriental, para servir de caça em um jogo elitista.
Gilpin entrega uma performance que sustenta o filme e desafia narrativas tradicionais. Sua personagem, Crystal, transcende os clichês ao subverter tanto a fragilidade atribuída às mulheres quanto os ideais do feminismo tradicional. Em vez disso, ela adota uma abordagem pragmática e, em certa medida, brutal, espelhando as piores características de um sistema patriarcal. Essa escolha narrativa é ao mesmo tempo desconfortável e fascinante, ampliando a reflexão sobre os limites éticos e morais que a história propõe. A violência explícita que permeia o filme torna-se quase justificável pela forma como Gilpin interpreta sua protagonista: uma mulher sem paciência para convenções ou sentimentalismos.
Zobel, por meio de “A Caçada”, não apenas escancara as desigualdades sociais e os conflitos ideológicos, mas também questiona a própria essência da humanidade. O filme sugere que, ao ceder aos nossos instintos mais primitivos, estamos não apenas nos afastando do que nos torna humanos, mas também pavimentando o caminho para a nossa ruína.
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