O lançamento do álbum “Baseado em Fatos Reais, 30 anos de Fumaça” (2024), do Planet Hemp, é um acontecimento musical. O rock brasileiro anda em baixa, em termos de alcance de público, mas ainda tem valor estético. A concorrência pela atenção dos jovens aumentou nos últimos tempos, e o estilo de guitarras distorcidas perdeu espaço para o funk, o sertanejo e o gospel. Num momento de forte saudosismo roqueiro, a ousadia de Marcelo D2 e BNegão está em olhar para frente, a fim de encontrar caminhos.
O tempo é de mega shows de medalhões, como Paul McCartney e Titãs. Por isso, a vida do Planet Hemp não é fácil. Exige-se uma forte inquietação para quem pretende se manter na ativa. O álbum novo faz um mergulho na história do grupo e traz participações especiais de artistas que aponta para um futuro. O rock não morreu, porém precisa se transformar. No caso do Planet Hemp, a mutação representa nível elevado de maturidade, no qual passado e futuro se fundem, informações locais e estrangeiras afloram.
O resultado obtido pelo Planet Hemp nos faz pensar num processo formativo ainda vivo na cultura brasileira. Pensar em formação não é só traçar linhas históricas, influências, antecessores, contemporâneos e descendentes. É a maneira de formular a ideia de como foi possível ter uma produção de rock num país como o Brasil. Trata-se de construir um percurso que vai da Jovem Guarda, nos anos 1960, até uma consolidação de uma forma musical externa à cultura brasileira trinta anos depois.
Usando termos da formação pensados por Antonio Candido, é possível contar a trama da vontade de brasileiros e brasileiras de ter um rock próprio, que é galho de ingleses e norte-americanos, mas que carrega valor por ser feito aqui, por jovens daqui, tratando de matérias locais. O convite é voltar no tempo, 40 anos atrás, e ver o que ocorreu naquele momento que não vai se repetir. Em pouco mais de uma década, o rock nacional explodiu, chegou a um ápice e entrou na etapa de transformação que vemos hoje.
Origens do sistema
Nos anos 1980, a música produzida por jovens no Brasil sofreu uma mutação. A MPB, nascida duas décadas antes, cedeu espaço para o novo rock, sintonizado aos fluxos internacionais. Ainda mais importante foi a construção de uma indústria cultural para roqueiros e admiradores do pop rock. Havia, enfim, um sistema cultural: músicos, grupos em atividade, discos com alcance de público e espaços para recepção (festivais com show, imprensa especializada, rádios exclusivas para divulgação e consumidores).
Após manifestações e sucessos rápidos nos 1960 e 1970, o rock brasileiro encontrou lugar numa sociedade também em mudança. A abertura política, com o fim da ditadura militar, acenava para o retorno à democracia e o surgimento da nova cultura jovem. A democracia tornou-se, desde então, valor muito forte para o campo cultural. Não haveria mais o romantismo revolucionário da MPB. O rock oitentista nasceu no contexto de fim das utopias políticas, cultura do narcisismo, pressões do mercado e defesa de liberdade.
O influxo externo deu o tom. Prevaleciam os ventos da New Wave americana e do pós-punk inglês. Uma certa ruptura ocorria em relação à herança da música popular da geração anterior. A atualização em relação ao “relógio” do mundo era bem-vinda. O que havia de brasileiro propriamente, eram a língua e o ritmo das palavras. No Rio de Janeiro, por exemplo, havia a influência da Poesia Marginal, em parcerias de Bernardo Vilhena com novos roqueiros. Uma linguagem das ruas, bares, praias, ganhava tradução musical.
Na transição rumo à democracia, porém, o consenso social e político da época exigiu o controle da rebeldia de outros tempos. O rock brasileiro dos anos 1980 não tinha laços com a canção de protesto, e a revolução social ficara mesmo na imaginação do passado. Havia até certo preconceito em relação às sociedades alternativas e aos desbundes. O horizonte apontava mais para o que rolava nas cidades de Nova York e Londres — onde passou a reinar o culto do individualismo e do “mínimo eu”.
É nesse ambiente que floresceu a vontade dos jovens de ter uma música sua, cantada em português e embalada pela pulsação forte da música em língua inglesa. Nos anos 1980, o rock nacional pode gerar seus momentos decisivos, com grupos e músicos espalhados pelo país. E abriu-se o caminho para a consolidação do sistema-rock nos anos 1990, quando a produção incorpora a MPB, tem o espírito urgente da década anterior e indica um futuro inovador vindo das periferias urbanas.
Manifestações avulsas
Nos anos 1960, o rock no Brasil surge com o impulso da televisão. A TV Record teve um programa chamado Jovem Guarda, entre 1965 e 1968, para acolher a música nova. Acabou sendo o nome de um movimento. A influência dos Beatles era óbvia. Na versão brasileira para tardes de domingo, os cabeludos do programa se chamavam Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa — que depois acharam outro caminho, mais para o lado romântico. A atração tinha foco no entretenimento e na onda mundial de um rock básico.
O período também ficou conhecido também por “Ieieiê”, uma adaptação do “Yeah-yeah-yeah” das músicas inglesas e norte-americanas. Foi um movimento passageiro, mas que deixou marcas e influências profundas no rock brasileiro, como se pode ver nas releituras nos anos 1980 feitas pelos Titãs e depois por Arnaldo Antunes. Na década de 1990, os gaúchos Graforréia Xilarmônica e Frank Jorge deram novo impulso à herança da Jovem Guarda e do “ieieiê”, misturando à experimentação sonora.
O primeiro fruto maduro do rock brasileiro foram os Mutantes, na São Paulo de 1966. O grupo tinha os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista e a cantora Rita Lee, que viria a ser o símbolo do rock nacional nas décadas seguintes. A inovação estava na leitura do que os Beatles fizeram em álbuns experimentais (“Revolver”, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”). A versão brasileira recebeu um tempero do Tropicalismo, que reuniu artistas de Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Glauber Rocha.
Os Mutantes seguiam o rock inglês e o filtravam pela música brasileira. É como se John Lennon encontrasse Jorge Benjor numa esquina de São Paulo. Em sentido contrário, Caetano e Gilberto Gil absorviam informações dos roqueiros para canções que tinha a brasilidade. Os primeiros discos dos Mutantes trazem obras-primas como “Panis et circenses”, “Ando meio desligado”, “Dia 36” e “2001”. Mas, após o boom inicial, o grupo mergulhou na pretensão de ser sofisticado, perdeu Rita Lee e o frescor da inovação.
Na virada para os anos 1970, as experimentações deram nova cara ao rock no mundo, e o Brasil não ficou de fora do movimento. A delicadeza e força do folk (Bob Dylan, Neil Young, Byrds) e as viagens do Pink Floyd abriram caminhos. Quem seguiu a onda, foram os Secos & Molhados, um dos maiores e mais rápidos fenômenos da música jovem no país. Nesse grupo, estava a figura genial de Ney Matogrosso, que se tornou o maior intérprete de canções populares por essas bandas.
O personagem que completa a fase de manifestações avulsas e fundamentais era o baiano Raul Seixas. Trata-se do roqueiro radical, inspirado em Elvis Presley e Jerry Lee Lewis. O rock encontrou em Raul uma tradução brasileira na forma de cantar, nas palavras que buscam uma maneira própria de se expressar que só poderia ser daqui. Surgiram canções únicas: “Metamorfose ambulante”, “Gita”, “Como vovó já dizia”, “Mosca na sopa”, “Tente outra vez” e “Sociedade alternativa”.
Momentos decisivos
O rock brasileiro começa finalmente a se consolidar como sistema no ano de 1982. Um sistema cultural se forma no momento quando há a confluência de artistas, obras, públicos receptores e mercado de consumo. Um marco dessa época foi a criação da emissora de rádio Fluminense FM, em Niterói (RJ), que tem sua história contada no filme “Aumenta que é Rock’n’roll” (2024), de Tomás Portella. Pela primeira vez, os jovens sinalizaram para uma mudança geracional, deixando de lado a MPB.
Numa leva só, apareceram no Rio de Janeiro: Blitz, Lobão, Ritchie, Lulu Santos, Marina Lima, Barão Vermelho, Júlio Barroso/Gang 90, Kid Abelha. A fonte deles era o novo rock e pop internacional, misturado com a cultura jovem e carioca dos anos 1970. No mesmo caldeirão, cabiam a Poesia Marginal (Cacaso, Chacal, Ana Cristina Cesar) e a cena teatral puxada pelo grupo Asdrubal Trouxe o Trombone, de onde saíram atores e atrizes que renovaram o humor da televisão naquela década.
Um local chamado Circo Voador se tornou o palco para o novo rock. Quem era de outros estados, disputava espaço nessa casa de shows improvável. No meio do público, estavam produtores e executivos de gravadoras de discos que patrocinaram a nova cena. Percebe-se assim um sistema se formando. A síntese do espírito da época foi o Rock In Rio, em janeiro de 1985, ao mesmo tempo que o Brasil finalmente deixava a ditadura militar. E o nome que cristalizou o momento foi o grupo Paralamas do Sucesso.
O trio Paralamas representou bem o novo rock. Eram jovens de classe média, filhos de altos funcionários que moraram em Brasília e formados em universidades. De início, a influência maior vinha de outro trio, o inglês The Police. No Rock In Rio, eles mostraram a possibilidade de um rock com a cara brasileira, puxando para o reggae jamaicano. Anos depois, a brasilidade deles explodiu na canção “Alagados”, que apontou para o que viria a ser a música jovem no país a partir dos anos 1990.
A consolidação do sistema-rock vai se dar na década seguinte, quando grupos utilizam o acúmulo de sons que vinham desde Tropicalismo. Ainda nos anos 1980, apareceram duas obras-primas pelas mãos dos grupos Picassos Falsos e Black Future, ambos do Rio de Janeiro e que tinham um projeto de juntar dados locais e estrangeiros. O primeiro atingiu o ápice no disco genial “Supercarioca” (1988), e o segundo é um delírio experimental que vai levar ainda muitos anos para ser decifrado.
Sampa pulsa
Ao lado do Rio de Janeiro, a cena paulistana foi a que detonou o movimento de grandes proporções do rock. O sistema paulista envolvia uma quantidade enorme de grupos, casas de espetáculo e publicações na imprensa. A “Revista Bizz”, por exemplo, da Editora Abril, organizou as narrativas do rock dos anos 1980, no sentido de mostrar quem era quem. Jovens e adolescentes tinham enfim um espaço comum para se informar das novidades do mundo e do que nascia em diversos pontos do Brasil.
Junto a isso, criou-se um circuito de casas de shows alternativos, em locais com os nomes de Napalm, Madame Satã, Rose Bom Bom e Aeroanta. Eram as versões paulistas do Circo Voador do Rio. Dois livros contam bem como era aquele universo paulista: “À Sombra dos Viadutos em Flor (Quem Lê Sabe Por quê)” (2019), de Cadão Volpato, e “Meninos em Fúria: E o Som que Mudou a Música para Sempre” (2016), de Clemente Nascimento e Marcelo Rubens Paiva. São memórias de quem viveu aquela cena.
Os nomes mais conhecidos foram os grupos Ira!, Titãs, Ultraje a Rigor e RPM. Este último tornou-se um fenômeno de histeria e devoção por parte de adolescentes, por meio das canções “Louras geladas”, “Olhar 43” e “Rádio pirata”. Shows lotavam ginásios pelo país afora, e vendagens de discos batiam recordes. Trata-se do lado A do sistema paulista, com alcance nacional, inserção de música em trilhas sonoras de novelas e apresentações em programas de auditório das redes nacionais de televisão.
A cena paulistana abrigava ainda um lado B. Figuras que curtiam experimentação sonora, na linha do que se fazia no exterior. São grupos com os Inocentes (punks da periferia), Mercenárias (formado apenas por mulheres), Violeta de Outono (o mais sofisticado de todos), Akira S & as Garotas que erraram (pioneiro no uso da eletrônica), Patife Band (altamente experimental) e Fellini (a banda de Cadão Volpato). Ao mesmo tempo, os sons dançantes da periferia estavam nas canções do Gueto e do Skowa & a Máfia.
Fora do eixo
Os sistemas culturais de São Paulo e Rio de Janeiro davam o tom para o funcionamento do rock nos anos 1980. Mas a surpresa vinha de uma descentralização. Dois casos são emblemáticos pela riqueza de material. O primeiro foi Brasília no centro do país, e o segundo ocorreu em Porto Alegre no extremo sul. Ambos estavam “longe demais das capitais”, como diz o título do disco dos Engenheiros do Hawaii — este é um fenômeno de popularidade nacional que ainda merece uma leitura própria.
Brasília tinha a característica de ser um centro de alta renda, com uma universidade fortíssima (a UnB) e uma rede de contatos das embaixadas estrangeiras instaladas ali. O fluxo de informação impressionava pelo volume e rapidez: discos com últimas novidades de Londres e revistas especializadas internacionais. Era comum uma embaixada levar um artista de vanguarda da Europa para tocar de graça na cidade. As mostras de cinema (tudo de graça) abasteciam ainda mais os jovens de informações.
Nesse terreno, floresceram os grupos Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Trata-se da santa tríade que colocou a cidade no mapa do rock. Outras bandas igualmente boas não vingaram, deixando na memória coletiva os nomes de Escola de Escândalos, Finis Africae e Marciano Sodomita. Uma segunda geração roqueira viu o nascimento de Cássia Eller e Raimundos (estes foram fundamentais para a consolidação do sistema-rock no Brasil, mas simbolizando um último suspiro do gênero).
Com olhar regional, vale ressaltar o caso dos gaúchos Engenheiros do Hawaii, DeFalla e Replicantes. O Rio Grande do Sul continua a ser um ponto de referência na produção roqueira. Tem ligações com a Argentina, o Uruguai e uma tradição local muito viva. O livro “Gauleses Irredutíveis: Causos e Atitudes do Rock Gaúcho” é uma leitura valiosa para se entender a formação de um sistema próprio, regional, mesmo distante dos grandes centros de produção artística do país.
Desses locais improváveis é que surgiu o grupo baiano Camisa de Vênus, influenciado por Raul Seixas e pelo punk inglês. A mistura rendeu canções inigualáveis como “Eu não matei Joana D’arc”, “Hoje” e a versão para a tropicalista “Gotham city”, do poeta Capinam. A voz de Marcelo Nova é inconfundível e mostra o potencial da fala cotidiana no rock. Não é fácil nascer num local onde uma força cultural completamente distinta gerou o fenômeno do Axé e do carnaval de rua.
Sistema consolidado
Até o final dos anos 1980, o rock brasileiro acumulou experiências e resultados que permitiram o grande salto. O que mais se esperou, e se sonhou na época, foi o surgimento de grupos que incorporassem a brasilidade de forma radical e integral. Não como algo pontual, mas sim um projeto estético de fundo e bem estruturado. Que fosse além de colocar guitarra elétrica num samba ou forró. O fato é que houve sim um amadurecimento na década de 1990 para algo mais sofisticado e interessante.
O início daqueles anos representou uma confluência de questões no Brasil. Primeiro, ocorreu o desastre do governo Collor, com seu deslumbre por tudo que fosse estrangeiro. A autoestima dos brasileiros ficou abaixo de zero. Chegou-se ao ponto de grupos investirem em canções na língua inglesa, como foi o caso do Sepultura, fazendo um heavy metal a partir de Minas Gerais. A repercussão no exterior foi considerável, mas se mostrou um episódio isolado, sem continuidade.
Um segundo ponto de mudança nos anos 1990 foi na área tecnológica com a passagem do registro em vinil para CDs nos discos. Tinha início assim a digitalização dos produtos culturais, que se acentuou com o MP3 e os streamings. Também houve massificação dos grandes e pequenos festivais de música. Poderiam ser os shows de estrelas mundiais ou o surgimento de eventos locais. Outro fator determinante foi o canal MTV, que propagou ainda mais a produção roqueira em nível nacional.
O sistema-rock poderia atingir, assim, um nível de maturidade estética e econômica. E foi o que ocorreu. Finalmente, consolidou-se o estilo brasileiro único de fazer música jovem que tem um marco temporal muito preciso: o ano de 1994. Ressalte-se que foi o ano do Plano Real, que mudou o padrão de consumo ao acabar com a inflação crônica de décadas. Uma nova geração, posterior aos anos 1980, tinha condições de posicionar o rock em novos termos, mais abrasileirado, original e sofisticado.
A obra-prima do período tinha o nome de “Da Lama ao Caos” (1994), o primeiro disco de Chico Science & Nação Zumbi. A grande sacada estava na incorporação do maracatu de Pernambuco ao pós-inglês e à vanguarda eletrônica europeia. O novo som trouxe a ideia ou o conceito de “manguebit”. O mangue de Recife, com sua lama e seus caranguejos, se conectou aos bits dos computadores — a internet ainda estava por se popularizar. Ariano Suassuna se juntava aos experimentos eletrônicos.
A canção “A cidade”, por exemplo, fazia uma radiografia das possibilidades musicais e descrevia o espaço urbano. Em “Rios, pontes & overdrives”, o grupo promoveu o encontro do rap com a embolada. A canção-título trazia os versos iniciais: “Posso sair daqui para me organizar/ Posso sair daqui para desorganizar”. Chico Science reorganizou o sistema-rock que nunca mais foi o mesmo. Era da periferia do país que vinha a novidade que colava a energia do punk à acumulação musical de Gilberto Gil e Jorge Mautner.
Quem quiser conhecer a trajetória desse fenômeno cultural do Recife, tem à disposição o livro “Criança de Domingo: Uma Biografia Musical de Chico Science” (2024), de José Teles. O impacto do manguebit é tão intenso que pode ser notado até no cinema atual de diretores pernambucanos: Kleber Mendonça Filho (“O Som ao Redor”, “Aquarius”, “Bacarau”), Gabriel Mascaro (“Boi Neon”, “Divino Amor”) e Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”). Arte, cultura, se fazem com muita ambição e ousadia.
Na esteira de Chico Science, apareceu em 1995 o primeiro discos dos Raimundos — grupo da segunda geração do rock de Brasília. A fala nordestina se casava ao punk e ao hardcore de forma natural, como se houvesse uma ponte de culturas locais e cosmopolitas. As letras captavam o universo popular com palavrões, baixarias, piadas de mau gosto, numa fala bem brasileira do Nordeste. O som brega relido de maneira séria, sem exotismo. O forró de Zenilton filtrado, quem diria, pelo punk-rock dos Ramones.
O trocadilho Ramones-Raimundos expõe a identificação, a mistura de sons e a explosão de energia. A música “Mulher de fase (a linda)” fecha o disco “Só no forevis” (1999) e foi o ponto máximo da criatividade do grupo. A canção incorpora o imaginário sertanejo de sons, o country do interior do Brasil, à energia sonora do punk. É a exploração do que poderia ser feito de mais original. O que seria esse encontro do rock com o sertanejo do Centro-Oeste? O caminho foi aberto, mas não percorrido em suas possibilidades.
Voz ativa
Na consolidação do rock brasileiro, o Planet Hemp tem papel central e talvez com efeitos mais longevos. Os cantores Marcelo D2 e Bnegão são egressos das cenas do rap e do punk-hardcore no Rio de Janeiro. A história das origens do grupo está no filme “Legalize Já — Amizade Nunca Morre” (2016), de Johnny Araújo e Gustavo Bonafé. Garotos do subúrbio carioca que vendiam coisas na rua, na tradição do pregão. A fala cotidiana vira música e estabelece uma conversa com quem está de passagem.
A inovação do Planet Hemp está em promover o encontro de um Zeca Pagodinho com os grupos americanos Suicidal Tendencies e Rage Against the Machine. As letras tematizam, desde sempre, a liberação do uso da maconha. Isso levanta polêmicas e uma aversão ao grupo por parte de visões mais conservadoras. Mas o choque maior está na qualidade e sofisticação dos sons, e não nas letras. Após 20 anos de inatividade, o disco “Jardineiros” (2022) representou uma volta potente da banda.
A música “Distopia” abre o álbum e impressiona muito. O grupo aciona uma espécie de inteligência artificial (IA) poderosa que junta a batida de uma música de Marilyn Manson a uma crônica do Brasil em clima de fim de mundo. Cria-se um rock extremamente forte e hipnótico. Mas, de repente, em meio às guitarras distorcidas, aparece a voz do rapper paulista Criolo no refrão: “Sei da força da canção, eu sei/ Lutar com coração, eu sei/ Parece uma ilusão, mas sei/ Que não ando sozinho, não”.
Uma amostra do que o Planet Hemp pode alcançar está no mais recente disco ao vivo: “Baseado em Fatos Reais, 30 Anos de Fumaça”. O material se parece à IA que combina as mais diversas referências do grupo. Faz-se uma releitura da história do grupo e da formação do rock brasileiro. A galeria de participações inclui Criolo, Black Alien, BaianaSystem, Seu Jorge, Pitty e Mercenárias. O samba-rock dos anos 1970 se junta ao hardcore, ao trap, ao reggae. Possivelmente, esse é um futuro para o rock.
Nos últimos 30 anos, o rock deixou o centro da cena musical. A vanguarda da música jovem passou para as mãos de Mano Brown e os seus Racionais. O grupo da periferia paulistana tornou-se a “voz ativa” com a mistura de rap, funk, samba-rock, e o imaginário do evangélicos negros dos Estados Unidos. O disco “Sobrevivendo no Inferno” (1997), por exemplo, tem a estrutura de um culto cristão. Tudo isso significa mais mutação, com o rock dando lugar ao trap, ao sertanejo e até ao gospel.
O rap brasileiro tem uma potência única ao mobilizar e interpretar o imaginário das grandes cidades. Os rappers são trovadores e narradores de uma “guerra muito particular”, para lembrar o título do documentário de João Moreira Salles. Há quem exagere e diga que Mano Brown é o “Homero” da guerra civil nas periferias. Crime organizado, seitas religiosas, precarização do emprego, tudo isso embala as músicas de uma geração negra e periférica que apresentou esse universo ao público mais amplo do país.
Não temos mais uma classe média universitária para mediar histórias da realidade brasileira, como foram tropicalistas e grupos de Brasília nos anos 1980. A voz que fala com mais propriedade e energia vem das periferias. Vendo em retrospectiva, a consolidação do sistema-rock nos anos 1990 representou, na verdade, o seu limite em termos de adesão por parte do público. Agora é uma voz ativa, pobre, negra, que fala diretamente para o país inteiro, sem mediações, da realidade.
Numa esquematização, podemos pensar no rock como a forma musical de um projeto de social-democracia, estado de bem-estar, liberdade de expressão e inclusão. O samba foi a utopia modernista da conversa entre as classes sociais. E o rap funciona como narrativa do colapso do país, na vida precarizada. Do outro lado, o sertanejo e o gospel são buscas por raízes, pelo amor romântico, no sentido do conservadorismo que reclama de uma situação perdida e defende o resgate de algo imaginário.
O Brasil mudou de forma radical nos últimos 30 anos. No campo cultural e musical, os festivais roqueiros de hoje são cada vez mais uma miscelânea estranha de estilos, com destaque para os medalhões internacionais e as estrelas nacionais em ascensão nas plataformas digitais. Prevalece o tom saudosista. Nesse ambiente, o Planet Hemp é um ponto de fuga estético e de sobrevivência, ao olhar para as urgências do presente, implodir fronteiras musicais e apontar caminhos.