Lembro-me perfeitamente da primeira vez que escutei Amy Winehouse (1983-2011) pela primeira vez. Era um dia nublado, como o de hoje, bem como eu gosto, quando uma amiga colocou no tocador de CDs o disquinho, fora da capa, advertindo-me de que seria uma experiência rara. E foi mesmo: em muito tempo não ouvia nada tão gutural, nada tão autoral e tão cheio de personalidade, tudo muito bem-embalado num amálgama de metais e um violão quase surdo aqui e ali que encorajava até a mais empedernida das criaturas a se balançar, a exemplo do que, comprovaria depois, faziam os backing vocals. Pensei que aquela preta, talvez do Alabama ou do Bronx, cantava uma barbaridade e qual não foi minha surpresa ao deparar-me, dias mais tarde, com uma mulher branca e judia (!) de Southgate, uma área suburbana ao norte de Londres, numa matéria da revista “Rolling Stones”. “Back to Black”, título do tal CD e do filme de Sam Taylor-Johnson, parece exatamente isso: uma viagem no tempo, para um tempo em que Amy e eu éramos jovens de vinte e poucos, separados pelo Atlântico e cheios de sonhos, dor de cotovelo e a alma calejada de quem já nasce velho demais para este mundo. Taylor-Johnson junta as muitas peças do texto de Matt Greenhalgh e compõe um mosaico pleno de cor e, claro, som, levando quem assiste a reviver os ótimos e os péssimos momentos de Amy, porque com ela não havia meio-termo.
Antes de “Back to Black” (2006) houve “Frank” (2003), e antes da diva existiu uma garota que, malgrado soubesse defender-se, era no fundo insegura, carente, vulnerável, e também por isso encantadora, entoando os versos de “Fly Me to the Moon” (1954) entre uma e outra canção judaica nas festas de família. Amy vai se descobrindo uma artista e aos poucos literalmente acordando para a carga de responsabilidade muitas vezes desumana de suas escolhas. Ainda na introdução, uma cena, em que a futura cantora, acordando com o telefonema de Nick Shymansky, presta-se a um bom resumo das próximas duas horas: ela diz a Shymansky, um dos diretores artísticos da Island Records vivido por Sam Buchanan, que não será mais uma Spice Girl, e que quer distância de Simon Fuller, o dono da franquia “Idols”.
Tamanha empáfia, na verdade a mais completa tradução do sentimento de defesa e uma óbvia tendência à autossabotagem, poderia ter sido o fim da carreira de Amy ainda no ovo, mas a moça tinha anjo. O relacionamento dialético de Amy e o pai, Mitchell, explica muito do sucesso (e do fracasso) da nova sensação do showbiz, mas debitar na conta do ex-motorista de taxi toda a desgraça da filha é um absurdo, da mesma forma que Blake Fielder-Civil também estava ocupado demais com seu devotado processo de autodestruição para ser “o” culpado pelo caos na vida da esposa. A performance mediúnica de Marisa Abela desaconselha qualquer tentativa de julgar Amy uma pobre-diaba, um títere nas mãos de parentes interesseiros e surdos a seus clamores, e as excelentes interações com os personagens de Eddie Marsan e Jack O’Connell corroboram essa impressão.
A diretora vale-se dessa simpatia natural do público por cinebiografias de astros da música pop — mormente aquelas que, como a sua, debruçam-se sobre os astros da música pop que fenecem ainda muito jovens — para reacender polêmicas acerca da relação bastante estreita entre arte e dependência química. Amy Jade Winehouse era mais que uma e outra coisa, e era as duas ao mesmo tempo; em mais de ocasião, Taylor-Johnson saca de uma frase que Amy costumava repetir: “Quero ser lembrada como uma cantora, quero ser lembrada pela minha voz.” Você é, Amy.
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