A obra de Stephen King que vendeu 50 milhões de cópias e se tornou filme perturbador na Netflix Nicole Rivelli / Netflix

A obra de Stephen King que vendeu 50 milhões de cópias e se tornou filme perturbador na Netflix

 A dualidade entre o desejo de sobrevivência e a inevitabilidade da morte é um tema constante na literatura de Stephen King. Em “O Telefone do Sr. Harrigan”, essa dicotomia emerge de forma pungente, retratando o impacto de laços improváveis e a presença inexorável da finitude. No centro da narrativa está Craig, um garoto que encontra em Harrigan, um bilionário recluso, mais do que um mentor; uma espécie de espelho de lições e advertências que transcendem gerações.  

A história começa em 2003, no Maine, região que serve de palco para muitos dos universos de King. Craig, vivido inicialmente por Colin O’Brien, enfrenta o luto precoce pela morte da mãe. Sua relação com o pai, interpretado por Joe Tippett, é marcada por um distanciamento emocional que não é incomum em situações de perda. Ambos frequentam a igreja local, não por devoção, mas por inércia, até que Harrigan, um homem tão reservado quanto perspicaz, os nota. Donald Sutherland dá vida a esse magnata do mercado financeiro que, ao se aposentar em uma cidade pequena, deseja nada além de anonimato e paz.  

Harrigan, no entanto, enxerga em Craig algo incomum: uma determinação e curiosidade raras para alguém tão jovem. Apesar de sua visão debilitada, ele percebe a oportunidade de um vínculo mutuamente proveitoso. Oferece ao garoto um trabalho: visitá-lo semanalmente para ler livros. Essa simples troca transforma as terças-feiras no ponto alto da semana de ambos. Craig é introduzido a clássicos da literatura, enquanto Harrigan revê textos que evocam reflexões sobre sua própria existência. A escolha de obras como “O Amante de Lady Chatterley” simboliza tanto a complexidade de suas conversas quanto a busca de ambos por entender os impulsos humanos.  

Conforme os anos passam, Craig, agora interpretado por Jaeden Martell, continua sendo o único contato real de Harrigan com o mundo exterior. O relacionamento evolui, assumindo contornos quase familiares, mas sem jamais abraçar a emotividade típica de avós e netos. Essa relação é ilustrada por pequenos gestos, como os bilhetes de raspadinha que Harrigan oferece. Quando um desses bilhetes rende a Craig três mil dólares, ele decide adquirir um smartphone, marcando o início de uma mudança inesperada.  

Harrigan, resistente às tecnologias modernas, aceita o presente de Craig com relutância. Porém, logo se rende à utilidade do aparelho, especialmente em acompanhar os movimentos das bolsas de valores. Essa aceitação não é apenas funcional; ela introduz um elemento crucial à trama. O telefone se torna um elo entre o mundo material e o espiritual, catalisando eventos que desafiam a lógica e revelam o poder de conexões que vão além da vida.  

O diretor John Lee Hancock constrói o enredo com sutileza. Ao adaptar o conto de King, parte da coletânea “If It Bleeds” (2020), ele preserva o tom introspectivo e melancólico da obra original, enquanto explora camadas psicológicas que ressoam em sua adaptação. Diferentemente de adaptações mais convencionais, como “1922” (2017), “O Telefone do Sr. Harrigan” foge dos sustos explícitos para abraçar uma abordagem mais cerebral, que provoca inquietação de maneira discreta e eficaz.  

A relação entre Craig e Harrigan ganha novos contornos quando o idoso morre e, inesperadamente, continua a influenciar a vida do garoto. É nesse ponto que King e Hancock brincam com as fronteiras entre o racional e o sobrenatural, tecendo comentários sutis sobre a tecnologia e suas implicações éticas. A presença de Harrigan, mesmo após sua morte, se manifesta em momentos que desafiam Craig a confrontar dilemas morais e emocionais.  

Hancock traz um senso poético ao tratar as obsessões e ansiedades de King, resgatando temas muitas vezes deixados em segundo plano nas adaptações de suas histórias. A direção visual reforça o isolamento emocional dos personagens, enquanto a trilha sonora complementa as nuances sombrias da narrativa.  

“O Telefone do Sr. Harrigan” não busca agradar os fãs mais tradicionais do horror, mas oferece uma experiência única, introspectiva e perturbadora. Trata-se de um estudo sobre a solidão, o poder das conexões humanas e os ecos que permanecem, mesmo quando já não estamos mais aqui. A abordagem idiossincrática de Hancock resulta em uma adaptação que, embora discreta, é marcante — um tributo à complexidade do trabalho de King.

Filme: O Telefone do Sr. Harrigan
Diretor: John Lee Hancock
Ano: 2022
Gênero: Drama/Terror
Avaliaçao: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★