Os Washington parecem determinados a ampliar os horizontes criativos de sua família. Oito anos após Denzel Washington dirigir e protagonizar “Um Limite Entre Nós” (Fences), é a vez de Malcolm Washington, o filho mais novo, fazer uma estreia impactante com “Piano de Família”. Curiosamente, há conexões entre as duas obras, além da óbvia presença de August Wilson, o dramaturgo celebrado que escreveu ambas. Reconhecido como um dos maiores nomes do teatro norte-americano, Wilson uniu em “Piano de Família” uma profundidade intelectual rara com uma abordagem contundente e poética das questões raciais nos Estados Unidos.
Escrita em 1987 e vencedora do Pulitzer, a peça é uma joia da Broadway que ganha uma adaptação cinematográfica dirigida por Malcolm e roteirizada em parceria com Virgil Williams, que, juntos, recriam com precisão o ambiente da Pittsburgh dos anos 1930 e a complexidade psicológica dos personagens, um dos maiores trunfos de Wilson. O filme se destaca pela originalidade, surpreendendo a cada cena e escapando de clichês previsíveis.
A narrativa começa em 4 de julho de 1911, sob os fogos que celebram a independência americana conquistada em 1776, quando George Washington liderou a vitória sobre a Inglaterra. A data não é apenas um pano de fundo histórico, mas um marco que dialoga com os temas de liberdade e herança presentes no filme. A trama segue a família Charles, que recebe como legado um piano vertical, ornamentado com entalhes que retratam os rostos de seus antepassados. O instrumento, retirado da casa de James Sutter como uma espécie de reparação simbólica, carrega décadas de histórias e significados. Contudo, 25 anos depois, durante a turbulência econômica da Grande Depressão, Boy Willie viaja do Mississippi para a Pensilvânia com um objetivo claro: recuperar o piano e vendê-lo. Ele planeja usar o dinheiro para adquirir uma propriedade, materializando um sonho que ecoa as aspirações de gerações de afro-americanos descendentes de escravizados.
John David Washington dá vida a Boy Willie, canalizando a ambição e a frustração acumuladas por seus ancestrais em uma performance intensa e carismática. Seus gestos expansivos e discursos apaixonados contrastam com a firmeza da personagem Berniece, interpretada de forma brilhante por Danielle Deadwyler. A irmã de Boy Willie enxerga o piano como um legado inalienável e está disposta a proteger esse símbolo de memória a qualquer custo. Esse confronto entre os dois irmãos transcende o embate familiar, representando arquétipos opostos: a busca por emancipação econômica contra a preservação das raízes culturais e emocionais. Malcolm Washington aproveita essa dualidade para explorar o realismo fantástico, enquanto mantém o pé no terreno prático, levantando questões sobre a condição atual dos afro-americanos.
Com essa abordagem multifacetada, “Piano de Família” reafirma a relevância atemporal de August Wilson e sua obra, ao mesmo tempo que posiciona Malcolm como uma força criativa a ser observada. O filme não apenas revive um clássico teatral, mas também atualiza sua mensagem, destacando a urgência do diálogo sobre identidade, memória e luta por justiça.
★★★★★★★★★★