Ciência e religião nunca se bicaram, e até poder-se-ia dizer que o tal progresso está sempre muito bem com a ciência recolhida a suas atribuições — o que pode ser só um pretexto para o obscurantismo e a tirania das opiniões, como sabemos todos os que vivemos o surto planetário de covid-19. Contraditório? Sem dúvida, mas não é de hoje que os exemplos impõem-se, como se assiste em “Joy”. Ben Taylor faz uma reconstituição escrupulosa do nada alegre surgimento da fertilização in vitro, uma proeza que exigiu a dedicação incondicional e incansável de três personagens fascinantes cada qual a sua maneira. Taylor e os roteiristas Emma Gordon, Rachel Mason e Jack Thorne voltam seis décadas a fim de detalhar os bastidores de uma das maiores descobertas da comunidade científica (que, a propósito, torceu o nariz para o feito), os impactos na sociedade que se pretendia moderna daquele tempo e, o mais importante, em que proporção a vida de quem deu forma ao sonho foi mudada.
Em 1968, quem não conseguia gerar um filho pelos métodos naturais ou recorria à adoção ou aprendia a se conformar. No laboratório de Richard Geoffrey Edwards (1925-2013) em Cambridge, uma equipe desenvolve uma pesquisa que promete revolucionar o modo como o ser humano vinha se reproduzindo, desde que, claro, arranje meios de sustentar-se. Edwards engole o orgulho e decide bater à porta de Patrick Steptoe (1913-1988), um renomado obstetra e ginecologista que também já flertava com a ideia de dar um empurrãozinho à natureza e fecundar óvulos fora do útero — e que também enfrentava as dificuldades pelas quais Edwards estava passando. O diretor vai alinhavando o enredo a partir da atuação excessivamente contida de James Norton e Bill Nighy, até que o filme abre espaço para Jean Marian Purdy (1945-1985), uma enfermeira com especialização em embriologia.
Se Norton e Nighy são a cabeça da trama, Thomasin McKenzie se encarrega do restante; o espectador vai-se deixando conduzir pelas entrelinhas da história, que joga luz sobre os dilemas de Purdy, de um dia para o outro motivo da hostilidade da igreja que frequentava e banida pela própria mãe. Taylor parece dar uma guinada mais convicta para a emoção após a metade do segundo ato, quando também Edwards começa ver a causa com menos parcialidade e sobe o tom no célebre debate com o Nobel de medicina James Watson na televisão. Menos de dez anos mais tarde, em 25 de julho de 1978, nascia a britânica Louise Joy Brown, o primeiro “bebê de proveta” do mundo. Seguiram-se a ela outros doze milhões de filhos tão desejados, paridos pelo ventre da ciência.
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