Muito mais irracional do que aqueles que moldam suas vidas com base em estratégias que inevitavelmente culminam em insensatez e maldade, é quem deposita expectativas de sensatez em pessoas que enxergam a existência como um jogo sem regras, onde tudo é permitido para se alcançar o topo. Todos nós, sem exceção, carregamos questões intrínsecas que, muitas vezes, só fazem sentido em nossa própria percepção — e mesmo assim, após nos atormentarem pelo tempo necessário até que a vida nos brinde com a rara iluminação do discernimento.
Essa centelha, quase mágica, funciona como um atalho que o espírito toma em busca de razão, protegida como um tesouro contra os olhares vorazes dos que nos odeiam e a perplexidade muda daqueles que nos amam. É nesse campo de complexidades e reflexões que “Corra!” posiciona o espectador, inserindo-o em uma narrativa profundamente perturbadora e exigente, que demanda atenção e sensibilidade em doses equivalentes. Jordan Peele, com um domínio absoluto do tema, explora a fervilhante retomada do pensamento racialista em um cenário que parecia oferecer uma trégua breve, mas que logo transborda em sua forma mais frenética e agressiva. Esse pano de fundo serve como o motor para uma discussão visceral, que consolida o diretor como uma voz indispensável no cinema contemporâneo.
Destaque no Festival de Sundance em 2017 — onde estreou em uma sessão exclusiva para convidados —, “Corra!” deixa claro desde o início que Peele não está interessado em suavizar o impacto de sua mensagem. O que poderia começar como o romance idealizado de um casal em sua primeira viagem juntos, após cinco meses de namoro, rapidamente se converte em uma experiência de desconforto e paranoia, onde o motivo é tão explícito quanto inegável.
A primeira sequência já estabelece o tom: Andre, vivido por Lakeith Stanfield, caminha por uma rua arborizada, cercada de casas imponentes, quando percebe que está sendo seguido por um estranho em um carro. Se havia alguma dúvida sobre o que o diretor queria transmitir, ela se dissipa quando a narrativa avança para Chris e Rose — interpretados com precisão por Daniel Kaluuya e Allison Williams —, enquanto fazem as malas para visitar os pais dela. Em meio a uma conversa breve, mas carregada de tensão sobre como os pais de Rose podem reagir ao fato de Chris ser negro, o casal segue viagem, já imerso em um clima de inquietação.
O desconforto de Chris cresce como o instinto de um animal que pressente o perigo iminente, intensificando-se em diálogos gradativamente mais tensos e na recepção gelada que encontra na casa da família Armitage. Essa atmosfera claustrofóbica é amplificada pela fotografia de Toby Oliver, que utiliza tons saturados como azul petróleo e verde musgo para reforçar a opressão emocional que permeia cada cena.
À medida que a trama avança, o terceiro ato assume contornos ainda mais sombrios, incorporando elementos como hipnose, lobotomia e transplantes cerebrais. Há também uma referência mordaz a Jeffrey Dahmer, o infame assassino em série, usada por Rod, o hilário personagem de LilRel Howery, para aliviar momentaneamente a tensão com um humor sagaz. Tudo isso contribui para reafirmar que “Corra!” é um filme não apenas tecnicamente impecável, mas também indispensável em seu comentário social. Peele evidencia como o racismo, embora frequentemente mascarado por uma fachada de civilidade, pode se manifestar de forma brutal e inescrupulosa quando visa alcançar objetivos nefastos.
A obra de Peele transcende o simples entretenimento, convocando o público a encarar uma realidade incômoda e a refletir sobre as dinâmicas sociais que sustentam desigualdades e preconceitos estruturais. Mais do que um filme de terror, “Corra!” é um chamado urgente para que não percamos de vista os perigos da discriminação disfarçada, que opera silenciosamente, mas com consequências devastadoras.
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