Ridley Scott é um diretor que nunca se entrega à superficialidade em seus projetos. Cada obra que realiza carrega o peso de um mergulho profundo na essência do enredo, transformando a narrativa em algo que, ainda que não seja completamente original, apresenta um frescor inovador. Reconhecido como um dos cineastas mais respeitados de Hollywood, Scott imprime sua marca pessoal em cada filme, criando produções únicas, seja explorando os limites da ficção científica, como em “Alien — O 8° Passageiro” (1979), seja transpondo histórias reais para a tela com um toque de fantasia e até absurdos, como em “Casa Gucci” (2021). Quando Scott se debruça sobre narrativas de eventos improváveis, embora baseadas em fatos, ele tem o dom de ressuscitar segredos e nuances esquecidas, revelando novas perspectivas sobre o passado. Sua abordagem detalhista e quase obsessiva confere a essas produções um caráter investigativo singular, sempre embalado por uma narrativa fluida que envolve o público sem artifícios desnecessários.
Um exemplo claro dessa maestria é “O Gângster” (2007), que narra a ascensão de Frank Lucas, um motorista da máfia afro-americano, ao posto de rei do tráfico de heroína na Nova York dos anos 1970. A trama, que poderia parecer saída de uma obra de ficção, surpreende ao revelar suas raízes em eventos reais. O filme, longo e repleto de reviravoltas, recompensa os espectadores pacientes com uma história complexa que questiona a moralidade, a hipocrisia e o verdadeiro significado de justiça. Lucas, vivido com intensidade por Denzel Washington, é um personagem paradoxal: ao mesmo tempo carismático e aterrorizante, ele personifica a ambiguidade de figuras icônicas do cinema, que fascinam e repudiam em igual medida.
Frank Lucas, nascido em 1930 e falecido em 2019, é um dos papéis mais memoráveis da carreira de Washington. Um visionário no submundo, Lucas enxergou na Guerra do Vietnã uma oportunidade única para expandir o tráfico de drogas nos Estados Unidos. Inspirado por reportagens sobre o vício crescente de soldados americanos em opioides no Sudeste Asiático, ele tomou a audaciosa decisão de viajar pessoalmente para negociar a aquisição de heroína de alta pureza diretamente na região de conflito. Esse ato ousado resultou na criação da “Magia Azul”, uma versão quase pura da droga que dominou as ruas de Nova York e transformou Lucas no líder de um império avaliado em mais de 250 milhões de dólares. A operação de Lucas era altamente sofisticada: ele supervisionava cada detalhe, desde a importação da droga até sua distribuição, utilizando negócios aparentemente legítimos para lavar o dinheiro ilícito.
A ascensão meteórica de Lucas atraiu inimigos de todos os lados, além da atenção da polícia, que designou o detetive Richie Roberts, interpretado magistralmente por Russell Crowe, para liderar as investigações. A relação entre Lucas e Roberts, marcada por um jogo de inteligência e persistência, é um dos elementos mais intrigantes do filme. Roberts, um detetive com princípios inabaláveis, acabou por capturar Lucas após anos de perseguição. Contudo, em uma reviravolta surpreendente, Roberts abandonou a polícia após o caso e passou a atuar como advogado, representando o mesmo homem que ele havia colocado atrás das grades. Com uma defesa habilidosa, Lucas teve sua pena reduzida para 15 anos e, ao sair da prisão, conseguiu preservar boa parte de sua fortuna ilícita.
O Gângster é, sem dúvida, uma obra que dialoga com o legado de Martin Scorsese, especialmente em títulos como “Gangues de Nova York” (2002) e “O Irlandês” (2019). Assim como nas histórias de Scorsese, o filme de Ridley Scott explora a ascensão de personagens à margem da lei, que, apesar de desprezados por suas comunidades, conquistam um status quase mítico. Frank Lucas, por sua vez, simboliza essa dualidade, sendo tanto o arquétipo do gênio criminoso quanto a personificação das falhas de um sistema que ele soube manipular com maestria. Sua morte, em 2019, aos 88 anos, encerrou a trajetória de uma figura que, mesmo em sua decadência, deixou um legado indelével como um dos maiores expoentes do crime organizado nos Estados Unidos.
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