O cinema espanhol construiu, ao longo de décadas, uma reputação sólida, firmando-se como uma das indústrias mais potentes e inovadoras do mundo. Mesmo enfrentando barreiras imensas, como a censura e o conservadorismo impostos durante a ditadura de Francisco Franco (1892-1975), a partir dos anos 1960 começou a despontar com produções modernizadas e de impacto mundial. Clássicos como “Viridiana” (1961), de Luis Buñuel, e “Carmen” (1983), de Carlos Saura, marcaram épocas, enquanto Pedro Almodóvar tornou-se sinônimo de criatividade e sensibilidade ao longo das últimas décadas.
Ainda assim, o cinema espanhol do século 21 mostra que sua força transcende nomes consagrados. Filmes como “Dor e Glória” (2019) e “Mães Paralelas” (2022) consolidaram o status de Almodóvar, mas produções como “Abaixo de Zero” (2021), dirigida por Lluís Quílez, comprovam que a versatilidade dessa cinematografia é quase ilimitada. O thriller de Quílez é uma aula de tensão, explorando elementos que remetem ao drama psicológico e ao suspense, mas com um toque único que desafia as expectativas do público.
A trama se desenrola em Cuenca, uma região de invernos severos no nordeste da Espanha, onde dois policiais encaram uma noite que promete ser mais difícil do que previam. Martín, recém-designado para conduzir um ônibus que transportará sete prisioneiros de alta periculosidade entre penitenciárias, inicia seu turno ao lado do veterano Montesinos. De início, a relação entre os dois revela uma incompatibilidade evidente: enquanto Martín, interpretado de forma primorosa por Javier Gutiérrez, demonstra um perfil ético e familiar, Montesinos, vivido por Isak Férriz, exibe um comportamento menos ortodoxo, rompendo pequenas normas, como o uso de acessórios proibidos durante o serviço. Essa diferença de caráter, ainda que pareça trivial no início, acaba sendo crucial no desenrolar dos eventos, adicionando camadas de complexidade ao desenrolar da história.
A viagem, planejada para a noite como uma medida de segurança, rapidamente dá indícios de que algo está fora do normal. Durante a revista inicial, os prisioneiros são cuidadosamente inspecionados, mas Ramis (Luis Callejo) consegue ocultar um pequeno artefato metálico, que se provará decisivo em um momento crítico. Junto a ele estão Nano (Patrick Criado), Rei (Édgar Vittorino), Mihai (Florin Opritescu), Chino (Àlex Monner), Golum (Andrés Gertrúdix) e Pardo (Miquel Gelabert Bordoy). Cada prisioneiro traz consigo um histórico de crimes que, embora variados, garantem uma constante tensão entre os personagens e mantêm os policiais em alerta máximo. À medida que o ônibus avança por uma estrada coberta por um nevoeiro espesso, a narrativa guia o público em direção a um desfecho imprevisível, onde diferenças irreconciliáveis entre os envolvidos precisam ser postas de lado em nome da sobrevivência.
O suspense atinge seu ápice quando o veículo para de forma abrupta e inexplicável. O que parecia ser uma transferência rotineira rapidamente se transforma em um caos imprevisível. Mihai insinua que seus comparsas estão do lado de fora tentando resgatá-lo, mas suas palavras levantam suspeitas de blefe, aumentando a tensão entre os presos. Enquanto Martín tenta entender o que acontece, Miguel (Karra Elejalde) entra em cena, trazendo à tona o verdadeiro motivo do conflito. O personagem de Elejalde é um homem consumido pelo desejo de vingança, determinado a acertar contas com Nano, responsável por um crime cruel contra sua filha. Essa virada no enredo conduz o filme a momentos de ação e emoção que prendem o espectador até os minutos finais.
Com uma narrativa que lembra o suspense meticuloso de “A Qualquer Custo” (2016), de David Mackenzie, “Abaixo de Zero” entrega mais do que promete. Quílez constrói uma tensão crescente que culmina em um final catártico, fechando todos os arcos narrativos de forma impecável. As atuações de Gutiérrez, Elejalde e Criado são destaques absolutos, trazendo profundidade e autenticidade a personagens que poderiam facilmente cair no estereótipo. Elejalde, em particular, impressiona com sua habilidade de transitar entre papéis dramáticos e de ação, como já demonstrado em filmes como “100 Metros” (2016).
Ao encerrar sua trama no momento exato, o filme evita excessos e deixa uma impressão duradoura. “Abaixo de Zero” é uma demonstração magistral de como o cinema espanhol continua a surpreender e inovar, mesmo quando parte de premissas aparentemente simples. A direção habilidosa de Quílez e as atuações de um elenco talentoso provam que esta produção não apenas mantém viva a tradição de excelência do cinema espanhol, mas também a expande, mostrando ao mundo que a narrativa visual desse país é um território repleto de possibilidades e energia criativa.
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