A manutenção de regimes autoritários muitas vezes encontra terreno fértil no ataque sistemático a artistas e à livre manifestação cultural, enxergando nelas uma ameaça às bases estabelecidas. Essa repressão, quando bem-sucedida, sufoca ideias capazes de impulsionar transformações que os regimes temem: aquelas que desafiam o status quo de forma verdadeiramente revolucionária. “Nunca Deixe de Lembrar”, dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck, examina as engrenagens desse mecanismo, ao revisitar uma das facetas menos exploradas do nazismo. O diretor alemão oferece uma abordagem que tenta iluminar a origem de uma das mais devastadoras manifestações de ódio da história moderna, personificada na figura de Adolf Hitler (1889–1945).
No centro dessa narrativa está o desprezo pela arte, visto como uma válvula de escape para o ressentimento e a frustração de Hitler enquanto pintor fracassado. Esse ódio, entrelaçado a uma visão distorcida de moralidade e progresso, tornou-se uma das bases para seu regime. Em 1937, o Partido Nazista organizou em Munique uma exposição itinerante cujo objetivo era difamar artistas que desafiavam os valores impostos pela ideologia nazista. Obras de Picasso, Mondrian e Kandinsky, entre outros, eram ridicularizadas, enquanto criadores eram forçados a adaptar-se a uma estética controlada e restritiva. Essa campanha era mais do que um ataque à criatividade: era uma tentativa de moldar o espírito cultural da Alemanha, alinhando-o com os valores de opressão e homogeneidade racial do nazismo.
A exposição percorreu o país, promovendo uma visão grotesca e estreita, que desprezava avanços como liberdade de expressão e diversidade cultural. Ao sufocar a arte, o nazismo buscava consolidar sua narrativa de poder, preparando o terreno para a Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Esse contexto histórico é transposto para o universo de Dresden no prólogo do filme. Através do olhar do jovem Kurt, interpretado inicialmente por Cai Cohrs, acompanhamos a visita a uma dessas exposições, onde a arte é alvo de desprezo e distorção. É a tia Elisabeth (Saskia Rosendahl) quem insinua ao garoto o absurdo daquela perseguição, sem precisar articular diretamente as palavras. Em um espetáculo de cinismo e arrogância, Von Donnersmarck recria o ambiente sufocante do regime, que relegava a arte a um papel subserviente e propagandístico.
Inspirado livremente na vida de Gerhard Richter, um dos maiores pintores vivos da atualidade, o filme propõe um retrato ficcional que ressoa com a trajetória do artista. Assim como Richter, o protagonista Kurt (Tom Schilling na fase adulta) enfrenta não apenas a opressão nazista, mas também as restrições impostas pelo regime comunista pós-guerra, que substituiu o realismo socialista por uma versão igualmente limitadora da expressão artística. Ao longo de décadas, Kurt luta para encontrar sua voz criativa em um mundo que insiste em ditar os limites da arte.
O roteiro conduz o espectador por uma jornada extensa, marcada por encontros e reviravoltas que se desdobram em ritmo deliberado. O passado de Kurt está entrelaçado com figuras determinantes, como sua tia Elisabeth, tragicamente internada em uma clínica de esterilização forçada, e Ellie (Paula Beer), seu grande amor. A relação com Ellie é constantemente ameaçada pela figura de Carl Seeband (Sebastian Koch), um médico ginecologista cujas decisões durante o regime nazista colocam em xeque sua moralidade. Esses personagens compõem uma trama intrincada, onde questões de culpa, redenção e identidade convergem.
Ao explorar as nuances de um período sombrio, Von Donnersmarck constrói uma narrativa que rejeita simplificações. O título original, “Werk ohne Autor” (literalmente, “Obra sem Autor”), alude ao questionamento central sobre a autonomia da arte e seu papel na sociedade. Em uma produção que se estende por mais de três horas, o diretor desafia convenções narrativas para oferecer um estudo multifacetado da resistência criativa em tempos de opressão.
O filme ecoa os dilemas enfrentados por gerações de artistas que, em contextos políticos adversos, ousaram afirmar que a arte não precisa justificar sua existência. A mensagem de “Nunca Deixe de Lembrar” é clara: a arte transcende o pragmatismo e reflete as profundezas da condição humana. Gerhard Richter, cuja obra continua a inspirar, permanece como prova viva de que a criatividade é uma força que desafia limites, resistindo até mesmo aos maiores esforços de silenciamento.
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