O que você faria, caro leitor, se chegasse em casa depois de um trabalho e sua esposa estivesse picando uma montanha de cebolas grande o suficiente para ocupar quase toda a mesa da cozinha? Foi assim que começou a saga de Julia Child (1912-2004) pelo mundo da culinária francesa — depois que ela, casada com um diplomata, tentou preencher o tempo ocioso aprendendo a jogar brigde ou cantando em corais. Essa é a primeira metade de “Julie e Julia”, que se completa com Julie Powell (1973-2022), uma romancista frustrada que, como sua musa inspiradora, encontra entre caçarolas, rolos para abrir massas e fuês uma razão para continuar suportando esse vale de lágrimas que é a vida, tomando cuidado para que nenhuma receita absorvesse seu estado de espírito e desandasse.
Nora Ephron (1941-2012) une a história dessas duas mulheres de origens, épocas e visões de mundo tão discrepantes num filme de beleza pouco óbvia, que requer do público uma sensibilidade mais e mais refinada, tamanha carga de detalhes. A diretora-roteirista dá a cada uma de suas personagens centrais o devido espaço para que o filme corra em seus dois eixos, assentados nas páginas de “Julie and Julia: 365 Days, 524 Recipes, 1 Tiny Apartment Kitchen” (“Julie e Julia: 365 dias, 524 receitas, 1 cozinha de apartamento minúsculo”, em tradução literal), o compilado de receitas apresentadas por Child em seu programa de televisão, notas biográficas e autoajuda publicado por Powell em 2005.
Todo o glamour de “Julie e Julia” fica por conta da personagem de Meryl Streep, em mais um de seus papéis meticulosamente construídos. A harmonia do casamento de Julia deve-se em boa parte ao marido, Paul Cushing Child (1902-1994), alguém com amor e paciência o bastante para relevar as manias de uma esposa voluntariosa — e dez centímetros mais alta —, em busca de sua própria identidade. Quando se dá conta de que a alta gastronomia pode ser uma maneira de alcançar esse objetivo, ela se matricula na Cordon Bleu de Paris, onde Paul servia, e o resto é história.
Esta foi mais uma das várias e merecidas indicações de Streep ao Oscar de Melhor Atriz, mas a performance de Amy Adams não fica atrás. Julie, uma assistente remota para solicitantes do seguro oferecido pelo governo de Nova York para trabalhadores afetados pelo 11 de Setembro, está sempre na corda bamba, e Adams denota isso em toda cena. Ao voltar para casa, nos altos de uma pizzaria no Queens, faz amor com o companheiro, Eric, (quando o cansaço não os impede) e dá o trato que pode no apartamento, o que inclui fazer o jantar. Da mesma forma que Julia, mas com muito menos dinheiro, ela é uma amante da boa comida, e essa é a virada que a espera e a nós.
Julie passa a alimentar um blog no qual se propõe a levar a cabo uma a uma as mais de cinco centenas de receitas da quase xará, o que suscita outros questionamentos além dos que tocam a grana. Como ela tinha ânimo para debruçar-se sobre o fogão se chegava entre oito e nove da noite, depois de um expediente cansativo, durante o qual, não raro, chorava com quem estava do outro lado da linha? Além disso, a que horas a refeição ficava pronta? Ephron passa por cima desses preciosismos lógicos, confiando a Adams a fatia mais amarga da trama, e ela não decepciona, malgrado nunca se possa sentir aflorar o apetite, como fazem outros trabalhos com lautos e finos banquetes por pano de fundo, talvez o melhor deles sendo “O Sabor da Vida” (2023), do vietnamita Tran Anh Hung, cuja lembrança de uma personagem esmerando-se por decifrar a composição do molho bourguignon ou escondendo as lágrimas ao degustar uma omelette norvégienne sempre enchem-me ďágua a boca.
Os homens ficam de quina em “Julie e Julia”, e este é o grande problema aqui. Mesmo que tenha se tornado um dos melhores escadas de Hollywood, Stanley Tucci merecia mais, e na pele de Eric Chris Messina nem isso consegue. Quem aprecia e sabe cozinhar não sente-lhes falta; já para quem aprecia e entende de cinema, é como um vatapá sem dendê.
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