Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2004), de Charles Brandt (1942-2024), investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda sem pressa o envolvimento de Francis Joseph Sheeran (1920-2003), um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa (1913-1982). Aqui, Martin Scorsese (e quem mais seria?) esmiúça a trajetória de Frank Sheeran no submundo desde o começo, quando ele conhece Russell Bufalino (1903-1994), um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época, e se torna um pintor de casas, alusão às manchas de sangue das pessoas que extermina nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao dar nome à publicação.
Como já fizera em “Os Bons Companheiros” (1990) e “Cassino” (1995), Scorsese, um mestre em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de dar mais realismo aos enredos que defende, confere também fluência ao minucioso roteiro de Steven Zaillian ao recorrer a sobreposições de enquadramentos numa manobra complexa e inovadora, mérito de Thelma Schoonmaker, a editora com quem trabalha desde “Touro Indomável” (1980). Os três — Scorsese, Zaillian e Schoonmaker —, além de Rodrigo Prieto, o diretor de fotografia, tiveram suas respectivas indicações ao Oscar de 2020 (para não falar no prêmio de Melhor Filme), mas “O Irlandês” não conseguiu nada, numa das mais flagrantes iniquidades da quase centenária Academia.
“O Irlandês” soa como uma ode à velha malandragem americana e às figuras que a compunham, expediente pelo qual o diretor homenageia também colegas de uma vida inteira de labuta na indústria cinematográfica. Scorsese leva o espectador a descobrir faces menos monstruosas de Sheeran, começando por mostrá-lo caquético numa cadeira de rodas, confessando seu infindável rol de pecados ao padre que visita o asilo onde mora, cenário do princípio e do desfecho do longa. Se Deus manifesta alguma compaixão por esse veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quem assiste sente repulsa do motorista de um açougue responsável pelas entregas de quartos de boi aos restaurantes do Queens, território que Scorsese conhece bem, apenas os primórdios de um movimento planejado em todos os seus detalhes e que se alastra para todos os estabelecimentos comerciais de Nova York.
Sheeran conquista a confiança de Bufalino e galga postos de comando no crime organizado da cidade, chegando a frequentar a casa de Hoffa, com quem mantém uma amizade pautada pela tensão. O filme é muito mais que isso, claro, mas esse trio de homens truculentos, odiosos dá uma boa medida do que o diretor pretende. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, três atores-chave na obra de Scorsese, retrocedem e avançam no tempo com a ajuda da computação gráfica, mas também da maquiagem e de apliques de cabelo, o que garante a completa imersão na trama, sobretudo na meia hora final. Os velhinhos rabugentos do Oscar não acharam nada disso. Talvez a máfia tenha ido longe demais.
★★★★★★★★★★